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Richard Clayderman - Matrimonio De Amor .mp3
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domingo

AMOR PELOS LIVROS

Churrasco de cavalo
José Antonio Pinheiro Machado


Tive que ir à Bahia para entender o Acampamento Farroupilha do Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, em Porto Alegre. Os baianos começam o carnaval uma semana antes do tempo e terminam duas semanas depois. É uma devoção que consome 24 horas por dia, sob sol, chuva, falta de banheiro e de banho. Os gaúchos que acampam no parque têm esse mesmo tipo de destemor diante dos tormentos do desconforto. Com a militância apaixonada que lembra os baianos no carnaval, a gauchada vai fazendo a Semana Farroupilha ocupar o setembro inteiro. Nada consegue desencorajá-los. Nem mesmo o frio de rachar tardio de setembro diminui o entusiasmo. Certos anos, por pouco em setembro não pinta uma neve, para testar a têmpera dos nossos gaudérios. Quando estive no acampamento, certa vez, pensei que o carro ia naufragar no barro.
Valeu a aventura, porque a visita me convenceu de que somos mais gaúchos do que os outros. Pelo menos, mais gaúchos do que os argentinos. Como se não bastassem outros fundamentos da nossa eterna rivalidade, descobri, através do livro Fogão campeiro, que o Carlos Castillo nos presenteou no parque, que os argentinos comem carne de cavalo! Não apenas "comem", fazem mais: saboreiam, adoram.
Anos atrás, quando estivemos num grupo de brasileiros jantando com Fidel Castro no Palácio da Revolução, em Havana, pedi desculpas ao comandante: não ia comer o picadinho de cavalo, magnificamente apresentado, que era o prato principal da recepção. No limite da bravata de estância, expliquei que uma das tradições gaúchas é o respeito ao cavalo. Que o cavalo, para o gaúcho, é quase um irmão ou a continuação de suas próprias pernas etc. etc.
E, agora, essa dos argentinos... Eu já tinha ouvido falar que, num passado secular, os nossos índios churrasqueavam suas montarias, mas, o que fazer, eram selvagens remotos... Para o gaúcho argentino, um "costillar de potro" é uma iguaria. Soa como um costume bárbaro mantido no século 21. Castillo conta no seu belo livro que o mestre Dom Atahualpa Yupanqui — logo ele! —, numa daquelas charlas à beira do fogo, talvez depois de algum vinho generoso, lhe confessou que, de vez em quando, gosta de comer um assado de potro. Um potro! A barbárie é completa. Não é o sacrifício de um pingo velho nem o último recurso diante da escassez. É uma variação do cardápio, um apetite que faz salivar. Digo, como gostam de dizer aqueles guascas lá de fora, espantados com os desvarios alheios: morro e não vejo tudo.


O texto acima foi extraído do livro "Na mesa ninguém envelhece", Editora L&PM - Porto Alegre, 2004, pág. 95.

AMOR PELOS LIVROS

Gestantes, Idosos e Deficientes
Mário Prata


Sábado, supermercado supercheio. Entro para comprar três latinhas de cerveja. Dab, alemã, sem álcool.
Vou para a "fila de até dez", que está emperrada porque a mocinha está fechando uma temporada e, para passar para a outra mocinha, tem de dar baixa não sei em quê. Olho as filas normais. Imensas. Gente com dois carrinhos. Alfaces convivendo com milhares de papéis higiênicos. Lá no fundo, uma fila. Só um velhinho.
E a placa, em cima: gestantes, idosos, deficientes físicos. Dou uma piscada para a mocinha, a mocinha faz um beiço de tudo bem e eu fico ali. Só que chega uma idosa. E gorda e mal-humorada. No que eu me viro para dar o lugar a ela, ela ataca:
— Está grávida, é?
Evidentemente que ela estava a falar comigo e eu não estava grávido. Não tinha nenhum sintoma, até então. Mas a idosa era agressiva e eu resolvi não ceder o lugar para ela. E senti uma certa solidariedade do velhinho que lutava para enxergar o dinheiro dentro da carteira. Fiquei na minha. Mas a idosa estava a fim de briga:
— Idoso, meu senhor?
Eu, ainda calmo:
— Não senhora. Envelhecente.
Ela ficou pensando na palavra, mas acho que não captou o neologismo.
Resolvi olhar as compras dela. Bananas. Milhares, milhões de bananas. E nada mais. E a revista Capricho.
E ela caprichou na terceira estocada:
— Por acaso o senhor é deficiente físico?
E olhou para as minhas pernas que estavam onde sempre estiveram, firmes. Fiz cara de triste:
— Sou. Infelizmente sou deficiente físico.
Ela se abalou:
— Desculpa, eu não havia percebido. É que sempre tem uns malandros, sabe? Uns espertinhos.
Eu fiquei quieto. Ela me cedeu a vez. Coloquei as cervejas em cima da mesa. Mas ela era curiosa:
— De nascença?
— É, sim senhora. Os dentes. Está vendo os meus dentes? São pra frente. Isso é uma deficiência física, não é?
Ela quase chamou o gerente:
— Engraçadinho...
E eu:
— E tem mais: meu fígado é deficiente físico. Está despedaçado. Meu pulmão, não é de hoje. Completamente deficiente. E se a senhora quiser, tenho uma unha encravada fisicamente deficiente.
— Não estou achando a menor graça!..
— E a vista? Está escrito na minha carteira de motorista: deficiente visual! Escuto pouco, minha senhora. Tenho essa deficiência também: auditiva.
— Você é um idiota. Vou falar com o gerente.
E partiu. Paguei a minha conta, estava saindo quando ela chega com o gerente. Ela já havia infernizado o rapazinho, que veio por educação, mesmo. O gerente:
— Por favor, o que está acontecendo?
Eu:
— É essa senhora, seu gerente. Além de idosa, deficiente física!
— Eu? Deficiente física?
— Claro, ou a senhora estava na fila porque é gestante? Que eu saiba, ninguém engravida com bananas. Ainda mais verdes e duras como essas!
Fomos todos para a delegacia. A mulher era delegada aposentada. Desacato à autoridade. Documentos. A mulher era mais jovem do que eu. Bingo! Tava era acabada mesmo! Porque, gestante, não era. Nem idosa.
Devia ser, como eu, deficiente física. E mental.
E o gerente, aproveitou:
— Tem só um detalhe, minha senhora. A senhora não pagou as bananas.
Te poupo do que ela disse para o rapazinho fazer com as bananas duras e verdes.

O texto acima foi extraído da coluna que o escritor mantém no jornal "O Estado de São Paulo".

AMOR PELOS LIVROS

CEGO E AMIGO GEDEÃO À BEIRA DA ESTRADA
Moacyr Scliar


— Este que passou agora foi um Volkswagen 1962, não é, amigo Gedeão?
— Não, Cego. Foi um Simca Tufão.
— Um Simca Tufão? ... Ah, sim, é verdade. Um Simca potente. E muito econômico. Conheço o Simca Tufão de longe. Conheço qualquer carro pelo barulho da máquina.
Este que passou agora não foi um Ford?
— Não, Cego. Foi um caminhão Mercedinho.
— Um caminhão Mercedinho! Quem diria! Faz tempo que não passa por aqui um caminhão Mercedinho. Grande caminhão. Forte. Estável nas curvas. Conheço o Mercedinho de longe... Conheço qualquer carro. Sabe há quanto tempo sento à beira desta estrada ouvindo os motores, amigo Gedeão? Doze anos, amigo Gedeão. Doze anos.
É um bocado de tempo, não é, amigo Gedeão? Deu para aprender muita coisa. A respeito de carros, digo. Este que passou não foi um Gordini Teimoso?
— Não, Cego. Foi uma lambreta.
— Uma lambreta... Enganam a gente, estas lambretas. Principalmente quando eles deixam a descarga aberta.
Mas como eu ia dizendo, se há coisa que eu sei fazer é reconhecer automóvel pelo barulho do motor. Também, não é para menos: anos e anos ouvindo!
Esta habilidade de muito me valeu, em certa ocasião... Este que passou não foi um Mercedinho?
— Não, Cego. Foi o ônibus.
— Eu sabia: nunca passam dois Mercedinhos seguidos. Disse só pra chatear. Mas onde é que eu estava? Ah, sim.
Minha habilidade já me foi útil. Quer que eu conte, amigo Gedeão? Pois então conto. Ajuda a matar o tempo, não é? Assim o dia termina mais ligeiro. Gosto mais da noite: é fresquinha, nesta época. Mas como eu ia dizendo: há uns anos atrás mataram um homem a uns dois quilômetros daqui. Um fazendeiro muito rico. Mataram com quinze balaços. Este que passou não foi um Galaxie?
— Não. Foi um Volkswagen 1964.
— Ah, um Volkswagen... Bom carro. Muito econômico. E a caixa de mudanças muito boa. Mas, então, mataram o fazendeiro. Não ouviu falar? Foi um caso muito rumoroso. Quinze balaços! E levaram todo o dinheiro do fazendeiro. Eu, que naquela época j á costumava ficar sentado aqui à beira da estrada, ouvi falar no crime, que tinha sido cometido num domingo. Na sexta-feira, o rádio dizia que a polícia nem sabia por onde começar. Este que passou não foi um Candango?
— Não, Cego, não foi um Candango.
— Eu estava certo que era um Candango... Como eu ia contando: na sexta, nem sabiam por onde começar.
Eu ficava sentado aqui, nesta mesma cadeira, pensando, pensando... A gente pensa muito. De modos que fui formando um raciocínio. E achei que devia ajudar a polícia. Pedi ao meu vizinho para avisar ao delegado que eu tinha uma comunicação a fazer. Mas este agora foi um Candango!
— Não, Cego. Foi um Gordini Teimoso.
— Eu seria capaz de jurar que era um Candango. O delegado demorou a falar comigo. De certo pensou: "Um cego? O que pode ter visto um cego?" Estas bobagens, sabe como é, amigo Gedeão. Mesmo assim, apareceu, porque estavam tão atrapalhados que iriam até falar com uma pedra. Veio o delegado e sentou bem aí onde estás, amigo Gedeão. Este agora foi o ônibus?
— Não, Cego. Foi uma camioneta Chevrolet Pavão.
— Boa, esta camioneta, antiga, mas boa. Onde é que eu estava? Ah, sim. Veio o delegado. Perguntei:
"Senhor delegado, a que horas foi cometido o crime?"
— "Mais ou menos às três da tarde, Cego" — respondeu ele. "Então" — disse eu. — "O senhor terá de procurar um Oldsmobile 1927. Este carro tem a surdina furada.
Uma vela de ignição funciona mal. Na frente, viajava um homem muito gordo. Atrás, tenho certeza, mas iam talvez duas ou três pessoas." O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto, amigo?" — era só o que ele perguntava. Este que passou não foi um DKW?
— Não, Cego. Foi um Volkswagen.
— Sim. O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto?" — "Ora, delegado" — respondi. — "Há anos que sento aqui à beira da estrada ouvindo automóveis passar. Conheço qualquer carro. Sem mais: quando o motor está mal, quando há muito peso na frente, quando há gente no banco de trás. Este carro passou para lá às quinze para as três; e voltou para a cidade às três e quinze." — "Como é que tu sabias das horas?" — perguntou o delegado. — "Ora, delegado"— respondi. — "Se há coisa que eu sei — além de reconhecer os carros pelo barulho do motor — é calcular as horas pela altura do sol." Mesmo duvidando, o delegado foi... Passou um Aero Willys?
— Não, Cego. Foi um Chevrolet.
— O delegado acabou achando o Oldsmobile 1927 com toda a turma dentro. Ficaram tão assombrados que se entregaram sem resistir. O delegado recuperou todo o dinheiro do fazendeiro, e a família me deu uma boa bolada de gratificação. Este que passou foi um Toyota?
— Não, Cego. Foi um Ford 1956.

O texto acima foi publicado no livro "Para Gostar de Ler — Volume 9 — Contos", Editora Ática — São Paulo, 1984, pág. 26.

AMOR PELOS LIVROS

CHAPEUZINHO VERMELHO
Millôr Fernandes

Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio chamam-se alcunha ou vulgo). Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque, colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios. Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal selvagem carnívoro do gênero cão e... (Um parêntesis para os nossos pequenos leitores — o lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, - natural seria que, volta e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.).
Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo lobo que lhe disse: (Outro parêntesis; os animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e cinco minutos da tarde".
Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everiday Life", The Modern Library Inc. N.Y.). Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez — o que, segundo o conceito materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a idéia do capitalismo devorando o proletariado — e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com a roupa da avó.
Passaram-se quinze minutos (diagrama explicando o funcionamento do relógio e seu processo evolutivo através da História). Chapeuzinho Vermelho chegou e não percebeu que o lobo não era sua avó, porque sofria de astigmatismo convergente, que é uma perturbação visual oriunda da curvatura da córnea. Nem percebeu que a voz não era a da avó, porque sofria de Otite, inflamação do ouvido, nem reconheceu nas suas palavras, palavras cheias de má-fé masculina, porque afinal, eis o que ela era mesmo: esquizofrênica, débil mental e paranóica pequenas doenças que dão no cérebro, parte-súpero-anterior do encéfalo. (A tentativa muito comum da mulher ignorar a transformação do Homem é profusamente estudada por Kinsey em "Sexual Behavior in the Human Female". W. B. Saunders Company, Publishers.) Mas, para salvação de Chapeuzinho Vermelho, apareceram os lenhadores, mataram cuidadosamente o Lobo, depois de verificar a localização da avó através da Roentgenfotografia. E Chapeuzinho Vermelho viveu tranqüila 57 anos, que é a média da vida humana segundo Maltus, Thomas Robert, economista inglês nascido em 1766, em Rookew, pequena propriedade de seu pai, que foi grande amigo de Rousseau.

Extraído do livro "Lições de Um Ignorante", José Álvaro Editor - Rio de Janeiro, 1967, pág. 31

AMOR PELOS LIVROS

UM AMOR ANARQUISTA
Miguel Sanches Neto


Sobre uma banqueta de madeira, deixada ao lado de minha cama, estreita igual à dos demais solteiros, coloquei uma lata com flores silvestres, para que Jean Gelèac encontrasse ambiente agradável. Ele está com o grupo desde meados de 1891 e nunca teve mulheres, recusara o amor fácil de Narcisa, que mais espalhou a discórdia entre casados e solteiros do que amenizou a falta de fêmea. Tímido e jovem, um tanto romântico como sempre somos aos vinte anos, Gelèac tem se dedicado ao vício da virtude, resolvendo-se sozinho. Seu rosto está coberto de espinhas e, ao contrário dos homens casados, ou dos mais maduros, acostumados à solidão destas matas, ele tem a pele cor de papel e os olhos fundos, revelando ânsia de amor.
Falei seriamente com ele, estava precisando de mulher, e ele me disse que não, agüentava bem a vida na Colônia, mas bastava ver aquele rosto para perceber o quanto sofria. As mulheres casadas, mesmo se quisessem, e desgraçadamente elas não querem, não poderiam dar-lhe o carinho que merece. Decidi então compartilhar minha cama com ele.
Troquei também os lençóis — seria a primeira vez com uma mulher de verdade, e ele merecia algo bonito pelo que fizera à Colônia, por sua coragem e abnegação. Eu estava excitado por poder proporcionar aquele momento de amor.
Adele chegou quando a cama estava arrumada. Vinha com um de seus vestidos velhos, remendado na altura da barriga e ao lado da cintura, fino de tanto ser lavado, revelando o corpo miúdo, mas bem-feito, de mulher madura e saudável — esta saúde seria o remédio de Gelèac. Ela não estava nem expansiva nem acanhada, aproximou-se e me beijou na boca, numa entrega pacífica e silenciosa — senti sua pele fresca e os cabelos ainda úmidos do banho vespertino. Por um momento, tive vontade de ficar com ela no quarto, de trancar a porta de nossa casinha e convidá-la para se deitar; eu também me encontrava órfão de amor. Poderia ficar com ela até o amanhecer, não deixando ninguém tocar naquele corpo, mas este pensamento se desfez logo. Fui à janela e a fechei para que não entrassem pernilongos. Ela acendeu a lamparina pendurada na parede.


O texto acima foi extraído do livro “Um amor anarquista”, Editora Record, Rio de Janeiro, RJ, 2005.

AMOR PELOS LIVROS

EXÍLIO
Milton Hatoum

Dezembro, 1969

M.A.C. decidiu ir a pé até a rodoviária: comeria um pastel e seguiria para a W3. Numa tarde assim, seca e ensolarada, dava vontade de caminhar, mas preferi pegar o ônibus uma hora antes do combinado: saltaria perto do hotel Nacional, desceria a avenida contornando as casas geminadas da W3. A cidade ainda era estranha para mim: espaço demais para um ser humano, a superfície de barro e grama se perdia no horizonte do cerrado. A Asa Norte estava quase deserta, era sexta-feira, e só às três da tarde alguns estudantes saíram dos edifícios mal conservados. Do campus vinham os mais velhos: universitários, professores, funcionários, a turma escaldada. A liderança era invisível, os mais perseguidos não tinham nome: surgiam no momento propício, discursavam, sumiam.
Valmor não quis ir: medo, só isso. Medo de ser preso, disse ele.
Zombavam do Valmor, escarneciam do M.A.C., medroso como um rato, mas agora até o M.A.C. sairia da toca e quem sabe se na próxima vez Valmor...
A revolta se irmanava ao medo, às vezes ao horror, mas a multidão nos protegia e naquela tarde éramos milhares. Os militares esperaram o tumulto explodir na W3, depois veio o cerco e quase perfeito: nas extremidades e laterais da avenida, nos dois Eixos e nos pontos de fuga da capital. Às cinco ouvimos os discursos relâmpagos, urramos as palavras de ordem, pichamos paredes e distribuímos panfletos. A dispersão começou antes de escurecer. Ninguém iria ao Beirute, um bar visado pela policia, nem ao Eixo Rodoviário, uma praça de guerra. No corre-corre saí da W3, passei pelos fundos de lojas e bares, tentando caminhar sem alarde, assobiando, e o céu ainda azul era a paisagem possível. Nunca olhar para trás nem para os lados, nunca se juntar a outros manifestantes, fingir que todos os outros são estranhos: instruções para evitar gestos suspeitos. Até então nenhum rosto conhecido, e a catedral inacabada e o Teatro Nacional não estavam tão longe. Ficaria por ali à espera noite, anunciada pela torre iluminada.
A dispersão e a correria continuavam, e o mais prudente era ficar sentado no gramado da 302 ou da 307 e assistir ao bate-bola das crianças. Amanhã um passeio de bote com Liana no lago Paranoá, domingo a releitura de "Huit-Clos" [de Sartre] para o ensaio da peça. Se viver fosse apenas isso e se a minha voz (e não a de outro) gritasse meu próprio nome, duas, três vezes... Assustado, reconheci a voz de M.A.C., o corpo cambaleando em minha direção. A rua e a quadra comercial foram cercadas como num pesadelo, tentar fugir ou reagir seria igualmente desastroso. Depois de chutes e empurrões, eu e o meu colega rumamos para desconhecido. M.A.C. quis saber para onde íamos, uma voz sem rosto ameaçou: calado, mãos para trás e cabeça entre as pernas.
O trajeto sinuoso, as curvas para despistar o destino da viatura, manobras que apenas imaginávamos e agora estava acontecendo. Pobre M.A.C., era o mais retraído da segunda série, misterioso como um bicho esquisito. Tremia ao meu lado, parecia chorar e continuou a tremer quando saltamos da viatura e escutei sua voz fraca: sou menor de idade, e logo uma bofetada, a escolta, o interrogatório. Ainda virou a cabeça, o rosto pedindo socorro...
Não o vi mais na noite longa. Eu também era menor de idade e escutei gritos de dor no outro lado de uma porta que nunca foi aberta. Em algum lugar perto de mim, alguém podia estar morrendo, e essa conjetura dissipou um pouco do meu medo. Na noite do dia seguinte, me deixaram na estrada Parque Taguatinga-Guará. A inocência, a ingenuidade e a esperança, todas as fantasias da juventude tinham sido enterradas.
Na segunda-feira, M.A.C. não foi ao colégio nem compareceu aos exames. Mais um desaparecido naquele dezembro em que deixei a cidade. Durante muito tempo a memória dos gritos de dor trazia de volta o rosto assustado do colega.
Trinta e dois anos depois, na primeira viagem de volta à capital, encontrei um amigo de 1969 e perguntei sobre M.A.C.
"Está morando em São Paulo", disse ele. "Talvez seja teu vizinho."
"Pensei que tivesse morrido."
"De alguma forma ele morreu. Sumiu do colégio e da cidade, depois ressuscitou e foi anistiado."
"Exílio", murmurei.
"Delação", corrigiu Carlos Marcelo. "M.A.C. era um dedo-duro. Entregou muita gente e caiu fora."
Senti um calafrio, ou alguma coisa que lembra o medo do passado.

AMOR PELOS LIVROS

A ARMADILHA
Murilo Rubião


Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.
Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.
Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe que não se afastasse.
Também a Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa, ao fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul.
Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante:
— Estava à sua espera — disse, com uma voz macia. Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada.
O outro teve que insistir:
— Afinal, você veio.
Subtraído bruscamente às recordações, ele fez um esforço violento para não demonstrar espanto:
— Ah, esperava-me? — Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse à tona uma irritação antiga: — Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante, mau farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando, mudando de lugar e nome.
— Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.
— Então, como fez para adivinhar a data da minha chegada?
— Nada adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, nesta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.
Por instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam.
Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:
— Antes que me dirija outras perguntas — e sei que tem muitas a fazer-me — quero saber o que aconteceu com Ema.
— Nada — respondeu, procurando dar à voz um tom despreocupado.
— Nada?
Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação. Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro venceram-no.
— Abandonou-me — deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: — Disso você não sabia!
Um leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:
— Calculava, porém desejava ter certeza.
Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre os ligariam.
O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria, desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse.
Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa:
— Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo. Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.
— Não, além de desarmado, você não veio aqui para matar-me.
— O que está esperando, então?! — gritou Alexandre. — Mate-me logo!
— Não posso.
— Não pode ou não quer?
— Estou impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.
Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão.
Ao levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.
Lançou-se na direção dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:
— Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei precaução de colocar telas de aço nas janelas.
A fúria de Alexandre chegara ao auge:
— Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!
— Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.
— Gritarei, berrarei!
— Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos.
E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:
— Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.

O texto acima foi extraído do livro "Para Gostar de Ler — Vol. 9 — Contos", Editora Ática — São Paulo, 1984, pág. 17.

AMOR PELOS LIVROS

DIAS IDOS E NÃO VIVIDOS
Gilvan Lemos


A estrada de rodagem findava no silêncio. Estreita na terra pura, nua, ao chegar à curva parecia que o mato a havia engolido. Nas partes fofas, de areia, as marcas dos pneus do caminhão do leite; nas duras, onde sempre entremostrava-se um lombo cinzento de pedra, a solidão faiscante do sol, a presença firme do sol, a expectativa de uma coisa que indistintamente ia acontecer e que nunca acontecia.
O zumbido da desnatadeira manual, a força humana regrada pelo ritmo impositivo da máquina, a fadiga dum braço transmitida ao outro, a conformação refletida no olhar esmorecido, a contabilidade mental do volume de leite a ser desnatado ainda.
— Eu tinha uns quinze anos, mais ou menos.
Espaçadamente, os fornecedores diários. Modestos, pequenos produtores. E o leite. Em latas na cabeça, em alimárias, parte da carga contrapesada com mochilas de milho, feijão, pedra, mamona. Murmúrios de vozes mal acordadas, zurrar metódico de jumentos, passadas breves, ruído de uma folha de papel sendo rasgada. E a lamúria dos porcos grunhindo no chiqueiro.
— Era uma fábrica de laticínios, era?
— Entreposto. Desnatava-se parte do leite, era eu quem desnatava. À tarde o caminhão do leite vinha apanhar.
O homem. Agreste, robusto, a barba sempre por fazer. A camisa, por dentro das calças, entreabertas na prega do último botão, o umbigo rodeado de pêlos negros. No chão engordurado seus tamancos não retiniam, sim em casa, onde o piso de tijolos era varrido diariamente. A mulher recomendava: Calce os chinelos. Fumava grosso cigarro, de fumo por ele mesmo picado. Na extremidade, a que levava à boca, a mancha amarelada da saliva. À noite, na espreguiçadeira, de frente para a escuridão, falava sozinho. Se a mulher indagava, ele: Eu não disse nada. Daí então calava-se de fato, os lábios remexendo, sôfregos, como se ele blasfemasse interiormente.
Correria de ratos na sala da frente, a da recepção do leite, local da desnatadeira. Esta, a (minha) inimiga. Cães a latir de incompreensão e espanto. Seriam os espectros noturnos, o rangido dos galhos soprados pelo vento a causa dos seus desvelos. Na manga iridescente do candeeiro, mariposas cediam à tentação do holocausto. A aranha, em sombra refletida na parede, aumentada mil vezes, movia-se, dissimulando a concupiscência logo incitada. E os porcos não grunhiam no chiqueiro.
O homem deixava a cadeira, junto com a baba escura cuspia a ponta do cigarro. Boca escancarada, bocejos longos e repetidos. Dava dois passos. Cambaleando, espreguiçando-se furiosamente, encaminhava-se para o terreiro. O espaço desocupado adquiria-lhe a personalidade e, impositivo, recalcitrante, esperava-lhe o retorno, a resguardar-lhe a posição de mando. Lá fora os cães se acalmavam. O cavalo, olhos brilhantes como de labaredas, sacudia a cabeça, a tábua do pescoço retesada, as crinas empoeiradas de mistério. Eh-eh, fazia o homem, num acento inusitado de ternura. E, mãos nos quadris, a cabeça erguida para a negridão do céu, urinava no tronco do marmeleiro.
Portas batidas, janelas entrameladas. A espreguiçadeira, reposta no lugar de costume, resignava-se à própria imparcialidade. Os tamancos do homem conduziam-no à ausência. Sinais íntimos, últimos ruídos preparando-se para serem extintos pelo sono. Dele, porque para os outros (para mim) a noite se eternizava na insônia. Restavam na sala fulgores auditivos de um passado recente. Luzes e brilhos ouvidos mais do que vistos. Ouvidos pelo coração. Em transe o coração. A voz duma menina que lhe segura as (minhas) mãos: Não vá não, besta. Você vai se enterrar ali. E outra mulher, como esta agora remendando velhas camisas e calças desbotadas: É preciso, filho, será um ajuda para nós. Seu pai... Este a interrompia: Com onze anos saí de casa para ganhar a vida.
Vida, vida! A que estava vivendo, a que deixara para trás, a que se enfumava na lembrança, a que ingenuamente lhe aprazia e lhe faltava. Claros dessa outra vida, sonhos sonhados na vigília. E aquela estrela, mais do todas brilhante, a iludi-lo com o esplendor dum êxito indefinido.
Da camarinha, ressonos altos, roncos cavernosos. O homem penetrava-se em si mesmo, com o mesmo poderio pertencendo-se, com a mesma força mantendo o respeito intransferido. Na sala, a mulher, sem pressa de terminar os seus remendos, torcia a agulha escapa da agulha, tornava a enfiá-la no buraco: Não vai dormir? A ele (a mim) perguntava, e desfazia-lhe o procurado encanto. Porque, embora a semelhança física, sua voz diferençava da da outra e, sem ser áspera ou ofensiva, faltava a ela um toque inexplicável de meiguice, aquele que só se encontra na voz das mães que estão distantes.
Pelas frestas dos olhos umedecidos não mais a sombra da aranha na parede, não mais o recurso de acompanhar o vôo suicida das mariposas. E os ratos do depósito tinham sossegado.
— Quem eram eles? O homem do entreposto e a mulher, quem eram eles?
— Ela, irmã de minha mãe; ele, naturalmente, seu marido. E meu patrão.
As mãos tornadas insensíveis pelos calos, o enfado que não se acomodava ao remanso, o sono que não encontrava repouso. A voz da mulher, desta, a tia, ponteando-lhe as cordas da memória: Não teve mais notícia de sua mãe? O carinho, de que não tinha costume, empanado em promessas duvidosas: Sábado consigo que você vá à cidade. O olhar rápido, suspenso do alinhavo: Vai ver a feira, seus pais, seus irmãos. E num quase sorriso de cumplicidade: A namorada... Não tinha uma? E então?
Sábado ou domingo. Não havia parada. No peito da vaca o leite não podia esperar para ser tirado na segunda-feira; no entreposto não aguardaria sem mácula pela desnatação. Tampouco o caminhão deixaria de vir por um ou dois dias. Ele (eu) sabia disso, ela também. Os roncos inadvertidamente interrompiam-se na camarinha. E a voz do homem chegava suspicaz à mulher emaranhada em suas linhas: Não vem dormir hoje não? Era o sinal. O final. Do serão.
À tarde, o motorista do caminhão do leite trouxera-lhe um recado: Seu pai mandou dizer que é pra você ir sem falta, sua mãe está muito mal. O olhar enviesado do patrão, falanges cabeludas rasgando o papel da nota de remessa. A tia, em sombra furtiva transmudada, passando ligeiramente da porta dos fundos à varanda. No espaço, o tempo parado. Tudo parado. O motorista, com a última sílaba da última palavra do recado suspensa na boca aberta; o patrão segurando a nota que não se despregara de todo e que não se largava do bloco porque ele não acabava de puxá-la; a tia, de perfil, um pé erguido, sem dar a passada final que a conduziria à varanda. E os porcos grunhindo no chiqueiro.
Posso esperar no máximo dez minutos, completara o motorista. Não mais os porcos, só o zumbido da desnatadeira. Deixada de lado, ainda lhe transmitia o parco movimento. Dos músculos dele (de mim) inda exigia a força da vibração. E nos ouvidos fixava-se, monótona-eterna-calculadamente: a rígida marcação, o compasso opressivo da incerteza.
Eis a roupa especial colocada sobre a cama. Junto, os sapatos de irem à cidade e para esse fim jamais utilizados, e mais a pressa de revestir o corpo sujo de suor, calças os pés tanto tempo desacostumados de semelhante ostentação. Súbito, o patrão encostado no portal: Só depois de lavar o vasilhame. Por trás dele a mulher, a tia: Assim não vai dar tempo de pegar o caminhão. Silêncio intencional, o homem: Vai depois, a pé, o cavalo está doente. A outra voz, perdendo suavidades: Mas é tão longe! É a mãe dele, não compreende? E a ordem definitiva: Tanto faz.
Da janela, a mulher em vigilância. Era o marido que ela acompanhava com a vista. Ele, que tratava do cavalo e que, após, o conduziria ao pasto. Foi nessa ocasião que ela procurou o sobrinho. Levara-lhe a muda da roupa e os sapatos havia pouco abandonados: Troque-se aí mesmo, apresse-se que talvez ainda possa pegar o caminhão. Cortando em direção ao rio você o alcançará quando ele vier de volta. E o vasilhame? Ela mesma lavava. Ao partir, cabisbaixo, apenas ouviu — não precisava voltar-se para saber que a tia estava com os olhos pisados: Vá com Deus, meu filho. Só volte aqui quando quiser. E se quiser.
No ponto indicado, as marcas dos pneus na areia solta não pareciam recentes. Tão cansado se mostrava, não tempo de regozijar-se. A estrada triste era igual à que se avistava do entreposto nas tardes de longa aflição sem recompensa. O sol já não queimava, os pássaros escondiam-se no silêncio, o vento embalava a solidão presente fora e dentro dele (de mim).
Mesa posta, a família toda reunida. Os irmãos casados sem as esposas, as irmãs sem os maridos. Na cabeceira o pai, a calva esbranquiçada, a espera contrita. A luz fraca pendente do fio encaroçado de moscas, o relógio da parede batendo as horas, inatendido e solitário em sua marcha laboriosa, de roteiro jamais-em-tempo-algum alterado. Ninguém demonstrava dar por ele, por ele ou pelo relógio, o que não era de estranhar: seus lugares, respectivos, viviam sem novidades ocupados. Os cheiros, os ruídos de costume vindos da cozinha; os vários olhares de olhos injetados, as bocas salivantes. E um coro de avidez rumorejando nos lábios tensos, retorcidos. Foi quando a mãe surgiu da porta estreita, só ela alegre, só ela notando sua presença: Chegou enfim! Bem na hora. Vamos comer, meu filho. Mas em vez disso ela o abraçava chorando.
— Como? Então tinha ficado boa?
— Sonhei. Enquanto aguardava o caminhão, adormeci sentado numa pedra, a cabeça encostada no tronco duma árvore. Me lembro que quando acordei estava com o rosto lavado das lágrimas do sonho. O fato é que, ao chegar à cidade, ela já havia morrido.
Olhara-a rapidamente, apenas para certificar-se de que não era a mesma. Nos traços da do entreposto havia deixado a fisionomia, os gestos, a ternura calma, conforme vinha há tempo recompondo e comparando. A semelhança era tanta! Não no timbre da voz. Mas a daqui já não falava. As condolências, os reconfortos. Não queria que a ninguém pertencesse a dor de tê-la perdido, sua dor, íntima-úmida-dor. Por outro lado, a ninguém queria mais pertencer. E não se pertencia. De fora, ausentando-se, não se julgava de casa. Desta. A casa onde morre uma pessoa querida não é mais a nossa casa. Petrificava-se, pretendia ser único, ímpar no mundo. Mas quando o pai lhe disse: Ela ontem chamou tanto por você... — sucumbiu, entregou-se, o filho, também do pai, retornado. E quando o parente idoso, homem de prestígio, tentou acalmá-lo (Conforme-se, menino, foi um descanso pra ela.), agrediu-o, batendo-lhe no rosto, forte, desatinado.
— Foi o maior escândalo.
— Voltou, depois, pra trabalhar no entreposto?
— Não. Acalmados os ânimos, esse parente idoso, através do seu prestígio, conseguiu um emprego pra mim na prefeitura. Era um homem bom, me compreendeu.

Texto extraído do livro "A Inocente Farsa Da Vingança", Ed. Estação Liberdade — São Paulo — Maio, 1991.


PROJETO RELEITURA

AMOR PELOS LIVROS

FANTASIA ASSINADA
Joyce Cavalccante

Tínhamos, não sei por que nem quando, combinado que ele ia fazer meu retrato, mas nunca dava tempo e nenhum dos dois se organizava pra conseguir uma brecha na agenda. Um dia era ele que esperava a visita de um galerista importante, outro era eu que não acreditava em duendes e tinha que trabalhar. Enquanto isso, rodando como um fundo musical, uma euforia que ainda não era concretamente um tesão; mais parecida era com a excitação pela idéia de fazer o que jamais havia feito: posar para um pintor.

Nada que justificasse tanto alvoroço. Ninguém tinha combinado que eu deveria me despir para posar. Mas, lá no íntimo, já eu partia desse pressuposto. Querendo. Imaginando muito mais. Temendo.

Até quando nos encontramos numa festa. Ele veio conversar e baixinho, rouco, como se conspirando, perguntou quando eu poderia ir vê-lo em seu atelier. Olhei para os lados pra me certificar se meu namorado não estava nas proximidades e marquei dia e hora. Selamos o acordo.

Sem nada assumir, escolhi calcinhas de cetim verde escuro quase preto, combinando com um sutiã rendado. Meias novas e um figurino irretocável, sugerindo pecado. Banho, ao começar a me aprontar, perfume gostoso espalhado pelo corpo inteiro, inclusive entre os dedos dos pés. Surpresa me critiquei: Ainda não conseguiram pintar a imagem dos cheiros.

Consumindo-me em fantasias, depois de tanta preparação, ali estávamos um em frente ao outro. Ele, de macacão salpicado de tinta de todas as cores e ocasiões, mas o rosto barbeado e, se não me engano, exalava um leve cheiro de madeira perfumada como os perfumes da moda.

Foi me explicando como fazia suas próprias tintas, como com elas invadia as telas. Segurou-me com carinho pelo queixo, a luz do sol examinou meu rosto e minha mão, para decidir qual matiz seria o mais apropriado. Pôs-se a trabalhar, enquanto eu, caladinha, sentada no único divã de veludo cor de maravilha, alisava o tecido, observando. Mais tarde veio conferir a tonalidade que encontrara para minha cor: entre cambraia e pêssego, comentou, quase inaudível. Em seguida, parecia que eu já não estava mais ali. Concentrava-se para esboçar-me.

Pincelava na tela meu rosto que não se parecia comigo de início para depois começar a parecer-se. Vinha e apalpava meus olhos com os polegares.
Voltava ao cavalete. Olhava-me. Olhava a tela à distância. Examinava-me longa e lentamente; gesto sempre despudorado. Aproximava-se e me acariciava o nariz, medindo-o. Voltava a seu posto. Trocou de pincel, pegando agora um bem mais delicado. Desceu aos lábios de forma aplicada. Voltou a manipular as tintas numa paleta que trouxe para perto, e me explicou que estava inventando uma cor para meus lábios, descrevendo-os com gulosa luxúria. Experimentando a cor, passou o tímido pincel pelos contornos de minha boca, ato demorado, cuidadoso, ilícito; me deixando arrepiada, me obrigando a suspirar alto, quase me traindo. E para que ele não adivinhasse o estado de minhas calcinhas, fechei os olhos e o deixei servir-se, modular-me. Voltou à tela e depois de me pincelar à vontade, foi até a janela e decidiu que o sol já não mais o satisfazia. Continuaríamos no dia seguinte. Eu estava tonta. Rubra. Afogueada. Ele notou e indagou com cinismo se no dia seguinte eu conseguiria ficar como agora. Ria pelo cantinho da boca quando o deixei, respondendo: talvez.

Ao chegar o tal dia seguinte, ele tinha se adiantado e já desenhado meu pescoço. Contou-me que passou a noite inteira a fazer isso, me imaginando. Dizendo assim passava os dedos pelas minhas linhas, na tela, mais uma vez me arrepiando cá, me umedecendo lá.

Chegando perto ainda mais ousado, deslizou o olhar por mim inteira, descendo pela curva dos seios por entre o decote, adivinhando-os em tamanho e formato, desenhando-os demoradamente. Acariciava um depois o outro com o pincel. A partir daí me olhava com o rabo de um só olho, enquanto com a cabeça do polegar esfumava sombras em meus mamilos, que em mim se iam encolhendo, ficando durinhos. E ele a me fitar como se estivesse percebendo o arco-íris por baixo de minha blusa.

Acho que está ficando seca. Vou molhá-la mais. Estava se referindo à tinta. Deu lambidinhas nas linhas do pescoço, descendo até um dos meus peitos em figura, enquanto passava os dedos pelo outro, com ternura.

O corpo dele se avolumava também me querendo, fazendo de seu macacão uma tenda armada, assim como o meu o queria, regando-se. Mas graças à diferença eu estava absolutamente confiante que ele não sabia do que acontecia em mim, pois meu corpo não se denunciava como o dele, assim. Maliciosa, ria do que nele se passava, e ele não podia se rir igualmente de mim por ser masculino, expressionista.

Foram muitas essas sessões entre tardes ensolaradas ou escuras. De todas elas eu saía excitada, sentindo um não sei o quê, que vinha não sei de onde, e doía não sei por quê. Era tudo feito muito vagarosamente, prolongando os momentos. Fatalmente chegou o dia em que ele, já depois de ter me definido o umbigo e me acariciado o ventre com seus instrumentos, revelou minhas coxas e o que está entre elas, meu sexo, feixe das emoções mais fortes dessa vida. Me fez de pêlos louros e ralos, como sou. Me fez de pernas largas e abertas esperando sua visita, como estava. E para se certificar de que seria bem-vindo, acrescentou ao quadro duas gotinhas soltas descendo pela minha virilha esquerda, sugerindo já saber dos líquidos que de mim se geravam, mistérios da alma indiscreta que denuncia o querer feminino, cheio de ambivalências impressionistas.

Querendo comparar criação e criatura, quando o retrato ficou pronto, me pediu agora, finalmente, para tirar a roupa toda. Precisava ver-me. Eu precisava dele.

Nua, me conduziu pelos ombros, colocando-me ao lado da obra, na mesma posição da imagem. Como outras vezes já tinha feito, tomou distância para avaliar o resultado. Enquanto olhava para nós também se desnudava. Seu pincel, seu sexo já se preparavam para o ato final. Foi só quando veio a completar esse seu trabalho, satisfazendo-lhe o último detalhe, imprimindo em meu dentro sua assinatura e no canto inferior direito do quadro, seu orgasmo.



AMOR PELOS LIVROS

A BARATA
Dino Buzzati



Tendo voltado tarde para casa, esmaguei uma barata que, no corredor, me escapava entre os pés (ficou lá, preta, no ladrilho) depois entrei no quarto. Ela dormia. Deitei-me ao seu lado, apaguei a luz, da janela aberta via um pedaço de parede e o céu. Fazia calor, não conseguia dormir, velhas histórias renasciam dentro de mim, dúvidas também, uma genérica desconfiança no amanhã. Ela soltou um pequeno lamento. "Que houve?", perguntei. Ela abriu um olho, grande, sem me ver e murmurou: "Tenho medo." "Medo de quê?", perguntei. "Tenho medo de morrer." "Medo de morrer? Por quê?" Respondeu: "Tive um sonho..." Aproximou-se um pouco. "Mas que é que você sonhou?" "Sonhei que estava no campo, estava sentada na margem de um rio e ouvi gritos ao longe... E eu devia morrer." "Na beira de um rio?" "Sim.", respondeu "Ouvia as rãs... faziam crá, crá." "E que horas eram?" "Era noite e ouvi gritar." "Bem, durma, agora são quase duas horas." "Duas horas?", mas não conseguia compreender, já tornara a pegar no sono.
Apaguei a luz e ouvi alguém remexendo no pátio. Depois, subiu a voz de um cão, aguda e longa; parecia lamentar-se. Subiu, passando diante da janela, perdeu-se na noite quente. Depois abriu-se uma persiana (ou se fechou?). Longe, muito longe, mas talvez eu me enganasse, uma criança se pôs a chorar. Depois, novamente o ulular do cão, longo como antes. Eu não conseguia dormir.
Vozes de homens vieram de alguma outra janela. Eram baixas, como murmuradas entre o sono. De uma sacada abaixo, ouvi um cip, cip, zitevitt, e algumas batidas de asas. "Flório!", ouviu-se chamar de repente, devia ser duas ou três casas mais adiante. "Flório!", parecia uma mulher, mulher angustiada, que tivesse perdido o filho.
Mas por que o canarinho do andar de baixo acordara? Que havia? Com um rangido lamentoso, como se fosse empurrada devagarinho por alguém que não queria fazer-se ouvir, uma porta se abriu em algum lugar da casa. Quanta gente acordada a essa hora, pensei. Estranho, a essa hora.
"Tenho medo, tenho medo", queixou-se ela procurando-me com o braço. "Oh, Maria", perguntei, "Que tem você?" Respondeu com voz tênue: "Tenho medo de morrer." "Você sonhou de novo?" Fez que sim, devagarinho, com a cabeça. "De novo aqueles gritos?" Fez sinal que sim. "E você ia morrer?" Sim, sim, indicava, procurando olhar-me, com as pálpebras grudadas pelo sono.
Há alguma coisa, pensei: ela sonha, o cão uiva, o canarinho acordou, as pessoas se levantam e falam, ela sonha com a morte, como se todos tivessem sentido uma coisa, uma presença. Oh, o sono não vinha e as estrelas passavam. Ouvi distintamente no pátio o ruído de um fósforo aceso. Por que alguém se punha a fumar às três horas da manhã? Então senti sede, levantei-me e saí do quarto para beber água. A triste lâmpada do corredor estava acesa, percebi vagamente a mancha preta no ladrilho e parei, assustado. Olhei: a mancha preta se movia.Ou melhor, movia-se um pedacinho (ela sonha que vai morrer, o cão uiva, o canarinho acorda, pessoas se levantaram, uma mãe chama o filho, as portas rangem, alguém fuma, e há talvez um choro de criança).
Vi, no chão, o bichinho preto que movia uma patinha. Era a do meio, à direita. O resto estava imóvel, uma mancha de tinta que caíra da morte. Mas a perninha remava fracamente como se quisesse subir de novo alguma coisa, o rio das trevas, talvez. Teria ainda esperança?
Durante duas horas e meia, dentro da noite — senti um calafrio —, o imundo inseto grudado no ladrilho pelas suas próprias mucilagens viscerais, durante duas horas e meia continuara a morrer e ainda não acabara. Maravilhosamente continuava a morrer, transmitindo, com a última patinha, a sua mensagem. Mas quem a podia colher às três da manhã, na escuridão do corredor de uma pensão desconhecida? Duas horas e meia, pensei, continuamente para cima e para baixo, a última porção de vida na perninha sobrevivente, para invocar justiça. O pranto de uma criança — lera um dia — basta para envenenar o mundo. Em seu coração, Deus onipotente quisera que certas coisas não acontecessem, mas não pôde impedi-lo porque por ele mesmo foi decidido. Mas uma sombra jaz ainda sobre nós. Esmaguei o inseto com o chinelo e, esfregando no chão, esmigalhei-o num longo rasto cinza.
Então, finalmente, o cão calou-se, ela, no sono, se acalmou e parecia quase sorrir, as vozes se apagaram, calou a mãe, não se percebeu mais nenhum sintoma de inquietude do canarinho, a noite recomeçava a passar sobre a casa cansada, a morte fora inchar sua inquietude em outras partes do mundo.


Texto extraído do livro "Naquele Exato Momento", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1986, pág. 32, tradução de Fúlvia M. L. Moretto.

AMOR PELOS LIVROS

A BÍBLIA NA ÓTICA FEMININA
Frei Betto


A menina marcava as páginas onde estavam impressas aquelas leis absurdas com a intenção de, mais tarde, arrancá-las. 0 pai explicou-lhe que era inútil, havia muitos outros livros com as mesmas leis. quisesse mudá-las, teria de convencer as pessoas que faziam leis.
Lida por esta ótica, a Bíblia revela a igualdade entre homens e mulheres e denuncia a leitura machista que pretende derivar dos desígnios de Deus instrumentos de dominação, como a interdição de acesso das mulheres ao sacerdócio e ao episcopado, e a preponderância masculina sob o pretexto de que Eva foi criada a partir da costela de Adão — quando a natureza não deixa dúvidas de que todo homem nasce do corpo de uma mulher.
0 evangelista Mateus aponta, na árvore genealógica de Jesus; cinco mulheres. Tamar, Raab, Rute e Maria; e de modo implícito, a mãe de Salomão, aquela "que foi mulher de Urias". Não é bem uma ascendência da qual um de nós haveria de se orgulhar.
Em sua atividade pública, Jesus se fez acompanhar pelos Doze e por algumas mulheres: Maria Madalena; Joana, mulher de Cuza, o procurador de Herodes; Susana e várias outras. Portanto, o grupo de discípulos de Jesus não era propriamente machista. Além disso, Jesus freqüentava, em Betânia, a casa de suas amigas Marta e Maria, irmãs de Lázaro.
O primeiro milagre de Jesus foi para atender ao pedido de uma mulher, Maria, sua mãe, preocupada com a falta de vinho numa festa de casamento em Canã.
Escolhido por Jesus para ser o primeiro Papa, Pedro era casado.
Em nosso país, destacam-se Ana Flora Anderson, Teresa Cavalcanti, Wanda Deifelt e Athalya Brenner. O Centro de Estudos Bíblicos (Cebi) há anos forma, pelo Brasil afora, homens e mulheres dos setores populares em novos métodos de interpretação bíblica, pondo fim ao monopólio clerical e machista.
Descobrir que a mulher ocupa na Bíblia lugar e importância iguais aos do homem é questionar as igrejas que, às vésperas do terceiro milênio, insistem em reservar aos homens as funções de poder. E, por tabela, subverter os valores desta sociedade que considera a direção política um talento masculino e a questão social um derivativo da primeira dama, e ilustra sua publicidade televisiva e as páginas das revistas com mulheres que se prestam a ser reificadas, reduzidas ao mero apelo de consumo material e simbólico e, no entanto, queixam-se quando tratadas pelos homens como objetos descartáveis.

O texto acima foi publicado no jornal "O Globo", de 28/07/2000.


PROJETO RELEITURA

A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI - AFFONSO ROMANO

AFFONSO ROMANO

A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI

A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.

COM “Ó”, NUNO RAMOS VENCE O PRÊMIO PORTUGAL TELECOM DE LITERATURA

ENTREVISTA COM NUNO RAMOS


Nuno Ramos e os livros

Ao lançar Ó - narrativas entre a poesia e o pensamento, na definição do próprio autor -, Nuno Ramos, 48 anos, revolve a sua criação literária e reinventa-se mais uma vez. A inquietação é marca forte em sua produção literária e de artista plástico. Ao contrário de Cujo e O pão do corvo, livros de linguagem mais concisa e enxuta, os "contos" de Ó enveredam para uma prosa caudalosa, incessante, que arrasta junto sempre o corpo humano: é uma torrente a carregar o que lhe tenta impedir a passagem. Nesta entrevista por e-mail, o autor fala da multiplicidade de sentidos de Ó, do diálogo entre literatura e artes plásticas, da produção contemporânea, entre outros assuntos.

• Os contos de Ó não seguem modelos padrões. Muito pelo contrário. As narrativas inventam novas possibilidades. O senhor teme não ser compreendido e alguém decretar: os contos de Ó não são contos? Como senhor define sua literatura?
Acho que meu livro Ó não é um livro de contos. Penso nele como um misto de poesia com ensaios amalucados, entremeados por cantos, elegias, que aparecem em itálico. O que me guiou de início foi uma voz que pensa as coisas e as comenta, à Emerson ou à Montaigne. Claro que outras vozes foram surgindo, às vezes narrativas inteiras, com personagens e tudo, mas tenho a impressão de que a voz dominante quer falar das coisas, do mundo, quer tratar dos assuntos mais diversos. Se eu pudesse escolher, diria que o Ó está em algum lugar entre a poesia e o pensamento.
• Pode-se dizer que a sua prosa é caudalosa, verborrágica, no bom sentido da palavra. Hoje, muita gente recomenda e prega um texto conciso. O senhor tenta ir na contramão de boa parte da literatura feita hoje no Brasil?
Exatamente por ser muito verborrágico, preciso do corpo, da fisicalidade das coisas, tanto como escritor como na persona de artista plástico. Acho que meu trabalho é uma luta entre o impulso expressivo, demasiado confiante e às vezes quase retórico, e o freio do peso e do visgo das coisas. Acho que me tornei artista plástico justamente para encontrar este freio - nessa coisa indominável que é a matéria. Meus livros de ficção anteriores (Cujo, de 1993 e O pão do corvo, de 2001) têm uma prosa concisa, macerada, influenciada pelo lado Beckett, digamos assim, da literatura. Acho que Ó é uma tentativa de escrever mais solto, com períodos longos intercalados e apostos sucessivos, à maneira daquilo que mais me atraiu em tudo o que li, que é a frase interminável, infinitamente inclusiva, do Proust. Mas não saberia dizer se isso vai na contramão do que se produz hoje no Brasil.
• Há um leitor ideal para Ó?
Acho que o leitor ideal, qualquer leitor ideal, deve ser um sujeito muito chato. Espero não encontrar jamais meu leitor ideal. Deve ser uma experiência horrível.
• No conto Túmulos, lê-se: "vamos aos poucos nos esquecendo deles, dos nossos mortos, enquanto afundam na terra ou são queimados, ou mesmo atirados com pesos ao mar". De que maneira o senhor lida com a idéia da morte?
Antes de mais nada, morte é matéria, redução do sopro, do desejo, ao peso, ao inerte. Acho que esse é o primeiro interesse que tenho pelo tema: a passagem entre uma coisa e outra. Mas vale lembrar que o mais importante aqui é justamente essa palavra, passagem, que vale nos dois sentidos - pode ir do inerte ao vivo como do vivo ao inerte. Gosto, em suma, da reversão de uma coisa na outra - tanto de ver uma palavra virar cadáver quanto de ver um cadáver virar sentido, verbo.

• Quais são os seus demônios? O que o impulsiona a escrever?
Talvez a consciência de que nada do que fiz é relevante perto do que é ainda possível fazer. Não consigo pensar em meu trabalho senão como em um jogo que ainda está começando (e eu já tenho 48 anos!). O demônio mais cruel é o sentimento do possível. Mas talvez não haja arte (nem vida) sem ele.
• Qual o sentido da literatura em um tempo tão apressado, sem tempo, que luta o tempo todo contra a solidão, tão vital à leitura?
O ato de ler é em si mesmo mágico, em sua solidão ocupada por um outro (o livro). Quem lê pode estar isolado, mas não está sozinho. Neste sentido, há na própria leitura, independentemente do livro que se lê, uma resistência ao sentido de rebanho tão freqüente na vida contemporânea. É difícil imaginar um livro-rebanho, cuja própria leitura seja acachapante e unificadora - o livro vermelho de Mao, talvez? Ou a Bíblia (mas o sentido-rebanho da bíblia não vem da leitura em voz alta, da ladainha, daquilo que é lido no altar?) Ler é uma forma profundamente compartilhada de estar sozinho, o que não deixa de sugerir uma forma quase ideal de cidadania.
• O senhor acredita que a literatura é capaz de dar conta da realidade que nos cerca? A linguagem que inventamos é suficiente para compreender certo caos instalado ao nosso redor?
Eu não vejo caos, vejo controle. Acho as coisas cada vez mais apaziguadas, os discursos mais unificados e a arte trazendo pra si tarefas que eram da esfera pública. A loucura da arte foi povoada pelos (bons) discursos de nossa época - pelo arrazoado feminista, étnico, sexista, etc. Por mais que concorde com estes discursos, acho que a produção artística não deve coincidir com eles. Há em toda arte um pé fora do tempo, fora da história, que nossa época parece não entender, nem perdoar. De todo modo, acho que nada nem ninguém "dá conta da realidade". Talvez realidade seja justamente aquilo de que ninguém dá conta - nem a religião, nem a política, nem a espinha ereta, nem a tecnologia, nem os psicotrópicos. Talvez a arte, de modo geral, seja uma ferramenta para a gente tomar consciência disso.
• Com que autores a sua literatura dialoga? Quais escritores são fundamentais na sua formação como escritor?
Acho que Drummond é fundamental pra mim, aquele que vai de José a Lição de coisas. Algumas passagens (A paixão segundo GH) da Clarice Lispector. Beckett (Molloy) e Kafka (Um artista da fome) e Proust. Mais recentemente, venho me dedicando a um amor envergonhado pela literatura de Philip Roth.
• De que maneira o senhor tornou-se leitor?
Primeiro com Robinson Crusoé, versão resumida e ilustrada - mesmo naquela ilha no fim do mundo, sozinho e sem meus pais, era possível reconstruir a minha casa inteirinha, e eu continuava protegido. Acho que li o livro, como as crianças fazem, dezenas de vezes, e cheguei a esquentar o termômetro na lâmpada, para ficar em casa lendo. Depois, no início da adolescência, com Dostoiévski, Poe, Henry Miller, Álvaro de Campos - o terrível da vida batendo à porta.
• Os críticos e resenhistas te entendem ou te entediam?
Há uma mágica entre crítica e arte que nossa época também parece estar perdendo. O crítico não é um diretor de colégio chato querendo travar a vida sexual dos alunos - ele é parte de um circuito entre obra e mundo que alimenta o mundo e o público, mas alimenta também a obra. Há uma libido crítica que volta para a obra, fecundando-a, um desejo de mais obra, um pedido por mais arte, um querer mais e mais. Este sentido glutão da crítica é altamente positivo, e aparece, muitas vezes, ainda que o juízo sobre a obra seja negativo. O artista tem de ter ego para suportar isso, para deixar-se nutrir por isso, para extrair da crítica o que lhe interessa, e ao seu trabalho. Mas é claro que nem toda crítica tem esta voltagem, esta capacidade de viver a obra por dentro, solicitando dela que seja tudo o que pode ser.

BOLHA DE SABÃO LÁ SE VAI - RESENHA DO LIVRO Ó DE NUNO RAMOS

Entrevista com Nuno Ramos
Por Rogério Pereira e Vitor Mann

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA COM "MANUAL PRÁTICO DE LEVITAÇÃO"

MANUAL PRÁTICO DE LEVITAÇÃO
José Eduardo Agualusa


Não gosto de festas. Aborrece-me a conversa fiada, o fumo, a alegria fátua dos bêbados. Irritam-me ainda mais os pratos de plástico. Os talheres de plástico. Os copos de plástico. Servem-me coelho assado num prato de plástico, forçam-me a comer com talheres de plástico, o prato nos joelhos, porque não há mais lugares à mesa, e inevitavelmente o garfo quebra-se. A carne salta e cai-me nas calças. Derramo o vinho. Além disso odeio coelho. Faço um esforço enorme para que ninguém repare em mim, mas há sempre uma mulher que, a dada altura, me puxa pelo braço, vamos dançar?, e lá vou eu, de rastos, atordoado pelo estrídulo dissonante dos perfumes e o volume da música. Terminado o número, um tanto humilhado porque, confesso, tenho o pé pesado, sirvo-me de um uísque, com muito gelo, mas logo alguém me sacode, o que foi, meu velho, estás chateado?, e eu, que não, esforçando-me por sorrir, esforçando-me por rir às gargalhadas, como o resto da chusma, chateado? por que havia de estar chateado?, o dever da alegria chama-me, grito, lá vou, lá vou, e regresso à pista, e finjo que danço, finjo que estou feliz, pulando para a direita, pulando para a esquerda, até que se esqueçam de mim. Naquela noite estava quase a ser esquecido quando reparei num sujeito alto, todo vestido de branco, como um lírio, alva cabeleira à solta pelos ombros, a rondar sombriamente os pastéis de bacalhau. O homem parecia estar ali por engano. Achei-o de repente tão desamparado quanto eu. Podia ser eu, excepto pela roupa, pois evito o branco. O branco não é muito apropriado para o meu negócio. Menos ainda as cores garridas. Obedeço ao lugar-comum — visto-me de negro. Aproximei-me do homem, numa solidariedade de náufrago, e estendi-lhe a mão.
— Sou Fulano — disse-lhe. — Vendo caixões.
A mão do homem (entre a minha) era lassa e pálida. Os olhos tinham um brilho escuro, vago, como um lago, à noite, iluminado pela luz do luar. A maioria das pessoas não consegue disfarçar o choque, ou o riso, depende da circunstância, quando escutam a palavra caixões. Alguns hesitam: paixões? Não, corrijo, caixões. O sujeito, porém, permaneceu imperturbável.
— Nenhum nome é verdadeiro —, respondeu-me, com forte sotaque pernambucano. — Mas pode me chamar Emanuel Subtil.
— E o que faz o senhor?
— Sou professor...
— Ah Sim? E de quê?
Emanuel Subtil sacudiu a cabeleira num movimento distraído:
— Dou aulas de levitação.
— Levitação?!
— Levitação, sabe?, fenômeno psíquico, anímico, mediúnico, em que uma pessoa ou
uma coisa é erguida do solo sem um motivo visível, apenas devido ao esforço mental. A mente movimenta fluidos ectoplasmáticos capazes de vencer a força da gravidade. Eu ensino técnicas de levitação. Sem arames nem outros truques soezes.
— Interessante! Muito interessante! —, respondi, tentando ganhar tempo para pensar. — E tem muitos alunos?
O homem sorriu-me gravemente. É certo que não, disse, nos dias de hoje são poucas as pessoas interessadas em levitar. Tristes tempos estes. O triunfo do materialismo tem vindo a corromper tudo. Escasseiam as vocações para as obras do espírito. As vocações e a força mental — sugeri timidamente. Sim, confirmou Emanuel Subtil, sacudindo outra vez a magnífica cabeleira branca, e a força mental. As pessoas preferem manter os pés bem assentes na terra. E levitava, ele?, quis eu saber. Isto é, praticava com freqüência essa arte esquecida? Emanuel Subtil sorriu absorto:
— Não há dia em que não pratique. Levitar, meu caro senhor, é o mais completo dos exercícios. Cinco minutos em suspensão, logo pela manhã, ao romper da alva, estimula todos os órgãos vitais e regenera a alma.
Inclusive acontecia-lhe às vezes levitar por descuido. Contou-me que São José de Copertino, que viveu entre 1603 e 1663, sofria ataques de imponderabilidade sempre que algo o emocionava. Chamava a isso, com terror, "as minhas vertigens". Um domingo, durante a missa, elevou-se no vazio e durante largos minutos pairou numa aflição sobre o altar, em meio à chama aguda das velas, e ao alarido das beatas, ficando gravemente queimado. A igreja afastou-o, durante 35 anos, de todos os rituais públicos, em razão destas práticas extravagantes, mas nem isso impediu que a sua fama se propagasse. Uma tarde, passeando o santo homem pelos jardins do mosteiro, em companhia de um monge beneditino, foi subitamente arrastado até aos ramos mais altos de uma oliveira por um golpe de vento. Infelizmente sucedia com ele o mesmo que com os gatos, ou os balões, toda a sua propensão era para subir, não para descer, de forma que os monges tiveram de o resgatar de lá com o auxílio de uma escada. Murmurei qualquer coisa sobre a vocação mística das oliveiras, a tendência que demonstram, desde há milênios, para acolherem santos e demiurgos. Emanuel Subtil, porém, ignorou a minha observação. O caso de São José de Copertino, explicou, servia-lhe somente para ilustrar os perigos que incorre um leigo, ainda que excepcionalmente talentoso, ao praticar a arte da levitação sem o acompanhamento de um mestre:
— Você oferecia um Ferrari a uma criança? Certamente que não!
Concordei logo. É claro, por amor de Deus!, não o punha nem nas minhas mãos.
— Levitar não é para qualquer um, — prosseguiu Emanuel Subtil carregando nas palavras. — Levitar exige fé, perseverança e ainda algo mais: responsabilidade. Quer tentar?
E logo ali expôs as suas condições. Trezentos reais por mês. Quatro vezes por semana. Uma hora cada sessão. Naturalmente, acrescentou, seria impossível observar resultados antes de três a quatro meses.
— E se não obtiver resultados?
Emanuel Subtil sossegou-me. Em três meses, convenientemente orientado, até um
elefante consegue levitar. Mas ainda que eu me revelasse tão mau levitador quanto bailarino (só então percebi que passara a noite a observar-me) ele próprio me daria um empurrão. Citou-me o caso de um famoso médium inglês, Daniel Douglas Home, que nos anos trinta desafiava a tradicional fleuma britânica fazendo flutuar pianos e outros objectos pesados. Conta-se que uma noite levou um boi para o salão de um rico industrial, e o ergueu no ar. Ia o boi ao nível dos lustres, bem alto e iluminado, quando, por distracção ou um repentino desfalecimento de fé, lhe falharam as forças (ao médium), romperam-se os fluidos ectoplasmáticos, e o animal precipitou-se, com brutal fragor, sobre duas das acólitas.
— Morreram?
— O que lhe parece? — Suspirou. — A história da aeronáutica está cheia de tragédias, pequenas e grandes, mas nem por isso deixamos de andar de avião.
Declinei o convite. A festa chegara ao fim. Um velho negro dançava sozinho, de lágrimas nos olhos, alheio à música, vamos chamar-lhe música, uma mistura de alarme de carros, já rouco e exausto, e metais em convulsão. Duas raparigas muito loiras, muito lânguidas, dormiam abraçadas num sofá. Eu não conhecia ninguém. Ninguém me conhecia.
—Talvez você saiba de alguém que dê aulas de invisibilidade. Nisso estou interessado.
Emanuel Subtil olhou-me com desdém. Não respondeu. Já no hall, enquanto escolhia um guarda-chuva discreto, conforme ao meu ofício, entre um denso molhe deles, ainda vi o brasileiro abrir caminho através do fumo espesso e desabar no sofá, junto às duas raparigas loiras. Vi-o fechar os olhos. Cruzar os braços sobre o peito magro. Pareceu-me que sorria. Tenho conhecido gente um pouco estranha nestas festas. Existe de tudo. As ocupações mais bizarras. Eu sei, é claro, que isso depende sempre da perspectiva. Eu, por exemplo, vendo caixões. O meu pai vendia caixões. O meu avô vendia caixões. Cresci nisto. Acho até prosaico. Preferia, reconheço, dar aulas de levitação. Paciência. Consola-me saber que a morte é melhor negócio. Como o meu avô dizia - só uma coisa me aflige: a imortalidade.

Texto extraído do livro “Manual prático de levitação”, Gryphus Editora – Rio de Janeiro, 2005, pág. 49.