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domingo

AMOR PELOS LIVROS

Churrasco de cavalo
José Antonio Pinheiro Machado


Tive que ir à Bahia para entender o Acampamento Farroupilha do Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, em Porto Alegre. Os baianos começam o carnaval uma semana antes do tempo e terminam duas semanas depois. É uma devoção que consome 24 horas por dia, sob sol, chuva, falta de banheiro e de banho. Os gaúchos que acampam no parque têm esse mesmo tipo de destemor diante dos tormentos do desconforto. Com a militância apaixonada que lembra os baianos no carnaval, a gauchada vai fazendo a Semana Farroupilha ocupar o setembro inteiro. Nada consegue desencorajá-los. Nem mesmo o frio de rachar tardio de setembro diminui o entusiasmo. Certos anos, por pouco em setembro não pinta uma neve, para testar a têmpera dos nossos gaudérios. Quando estive no acampamento, certa vez, pensei que o carro ia naufragar no barro.
Valeu a aventura, porque a visita me convenceu de que somos mais gaúchos do que os outros. Pelo menos, mais gaúchos do que os argentinos. Como se não bastassem outros fundamentos da nossa eterna rivalidade, descobri, através do livro Fogão campeiro, que o Carlos Castillo nos presenteou no parque, que os argentinos comem carne de cavalo! Não apenas "comem", fazem mais: saboreiam, adoram.
Anos atrás, quando estivemos num grupo de brasileiros jantando com Fidel Castro no Palácio da Revolução, em Havana, pedi desculpas ao comandante: não ia comer o picadinho de cavalo, magnificamente apresentado, que era o prato principal da recepção. No limite da bravata de estância, expliquei que uma das tradições gaúchas é o respeito ao cavalo. Que o cavalo, para o gaúcho, é quase um irmão ou a continuação de suas próprias pernas etc. etc.
E, agora, essa dos argentinos... Eu já tinha ouvido falar que, num passado secular, os nossos índios churrasqueavam suas montarias, mas, o que fazer, eram selvagens remotos... Para o gaúcho argentino, um "costillar de potro" é uma iguaria. Soa como um costume bárbaro mantido no século 21. Castillo conta no seu belo livro que o mestre Dom Atahualpa Yupanqui — logo ele! —, numa daquelas charlas à beira do fogo, talvez depois de algum vinho generoso, lhe confessou que, de vez em quando, gosta de comer um assado de potro. Um potro! A barbárie é completa. Não é o sacrifício de um pingo velho nem o último recurso diante da escassez. É uma variação do cardápio, um apetite que faz salivar. Digo, como gostam de dizer aqueles guascas lá de fora, espantados com os desvarios alheios: morro e não vejo tudo.


O texto acima foi extraído do livro "Na mesa ninguém envelhece", Editora L&PM - Porto Alegre, 2004, pág. 95.