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Richard Clayderman - Matrimonio De Amor .mp3
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segunda-feira

AMOR PELOS LIVROS

IDA A TUPÃ
Mauro Rasi

Quando vamos passar o fim de semana em Tupã, distante uns 200 e poucos quilômetros de Bauru, todo mundo ia pra cama logo após o jantar, pra acordar cedinho. Mal conseguia dormir de excitação. Íamos ver tio Walter e tia Conceição e meus primos Neusa, Cidinha e Zé Roberto. Querem mais?
Às seis da manhã já estávamos na estrada. Papai pilotava o Gordini e mamãe puxava o coro, animadíssima.
— "Adeus Sarita;vou partir para a fronteira..."
Sua disposição era impressionante: As seis da manhã já estava com a corda toda, E, me vendo sonolento, pois não havia dormido direito de tanta excitação, ordenava:
— “Canta, menino!"
Eu, praticamente dormindo, completava, de mau humor:
— "Vou levar minha boiada para vender lá na feira.
Mamãe via um eucalipto na estrada e gritava:
— "Respira fundo, enche o pulmão."
Enchíamos o pulmão. Ela insistia:
— "Prende a respiração. Prende."
E não deixava a peteca cair. Quando ameaçava cair ela logo puxava "Ronda", de Paulo Vanzolini, que instantaneamente virava um sambinha animado:
— "Se hoje eu rondo a cidade a te procurar, sem te encontrar,lálárirá...'
Cantava tudo com alegria. Até "Assum Preto" tornava-se de uma alegria contagiante:
— "Furaram os óio, do assum preto, pra ele assim cantá mior..."
Na sua interpretação o pobre pássaro ficava cego, mas feliz. Mamãe não admitia infelicidade. Maysa em sua boca virava uma Ivete Sangalo. Seu "Meu Mundo Caiu" era visto com otimismo. Quem a ouvisse pensaria que o mundo havia desabado de felicidade.
Perto de Marília, ou seja, na metade do caminho, era hora de cantar o hit de Nora Ney, "Ninguém me ama, ninguém me quer". Com alegria; se é que isso é possível. Parecia que era tudo de mentirinha:
— "Fui como resto de bebida que você jogou fora..." Mamãe não sentia nada do que cantava; era tudo da boca pra fora. Como em "Lama", do Lupicínio:
— "Se meu passado foi lama, hoje quem me difama viveu na lama também...". Não havia rancor nem amargura. Era uma lama "limpa, uma lama do bem. Quando cantarolava "a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou" parecia até que o pai havia deixado um seguro de uns US$ 1 milhão e não algo de que se pudesse envergonhar.
Seu repertório era praticamente de fossa, que ela metamorfoseava. As músicas entravam lagartas e saíam borboletas. Ela sempre via o lado positivo das coisas. Depressão lá em casa não se criava, era sinônimo de chilique ou faniquito. Tudo se curava com um bom banho frio. E, se a depressão persistisse, vinha a ameaça:
— Dá uma enxada pra ele capinar o quintal que eu quero ver se esse fricote não passa...
Mas às vezes acontecia uma tragédia, como sábado passado. Papai foi matar formigas. Da última vez tinha usado querosene e quase pôs fogo na casa. Dessa vez usou formicida. Formicida Tatu. Só de ver aquela caveirinha entre duas tíbias estampada na latinha já suava frio. A latinha ficava guardada na última prateleira do armário do quintal, num lugar quase inacessível. Mas eu achava que um dia não iria me conter e acabaria abrindo a lata e experimentando um pouquinho. Deve ter sido porque o primeiro morto que eu vi (devia ter uns cinco anos) estava caído, descalço e sem camisa, no portão do E.C. Noroeste. Ao lado do corpo havia uma garrafa de Coca-Cola e a fatídica latinha.
Para encurtar a história, papai espalhou formicida pela casa, mas esqueceu de avisar o Bolinha, nosso cãozinho vira-lata, que foi lá e lambeu. E morreu.
Por isso estávamos indo para Tupã, para esquecer. Nessa época meu universo ia de Bauru a Tupã. Eu me perguntava: "O que será que tem depois de Tupã?". Mas no íntimo eu já sabia a resposta. Depois de Tupã começava a fantasia.

Texto extraído do caderno “Mais” da Folha de São Paulo, outubro de 2002.

AMOR PELOS LIVROS

A RESPOSTA
Lêdo Ivo


Seu nome era Serafim Costa. Mas nome de quem, ou de que? Na cidade pequena , decerto a sua figura deveria ter se cruzado, muitas vezes, com a do menino fardado, de camisa branca e curtas calças azuis extraídas das velhas casimiras paternas. Ele, o comerciante abastado, talvez comendador, não conhecia o garoto. E este jamais poderia ligar o nome à pessoa. Assim, Serafim Costa era apenas um nome — a belíssima sonoridade de um estilhaço de mitologia, uma flor aérea que, em vez de pétalas, possuía sílabas.
Ele morava no Farol, exatamente onde o bonde fazia a última curva. Os muros brancos, que cercavam o quarteirão, semi-escondiam a casa, também branca, além do jardim que aparecia entre as grades, e em cujos canteiros florejavam espessuras e certas musguentas flores amarelas, e um imenso besouro zoava. A casa era um palacete de dois andares, crivado de sacadas e cegas janelas, e que parecia desabitada. Possivelmente essa incorrigível falsária, a Memória, a pintou, sem tir-te nem guar-te, com a sua branca tinta adúltera, substituindo a verdade nativa, feita de alvorentes azulejos pintalgados de azul, por alguma caprichosa arquitetura rococó. De qualquer modo, de outro lado do muro reto, sem dúvida encimado por afiados cacos de garrafas para impedir o salto dos ladrões, a gente via as copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e outras árvores sob as quais alguns cães esperavam, impacientes, que a rotina bocejante do dia se esfarelasse para que eles pudessem latir, na noite raiada de estrelas, como que lembrando a Serafim Costa — que interromperia por meio minuto o seu sono tranqüilo e patriarcal — as suas presenças vigilantes.
— Aqui mora Serafim Costa devia ter-me dito meu pai, num daqueles crepúsculos em que, de bonde, voltávamos para casa; ele com a sua velha pasta que inexplicavelmente não o acompanhou ao túmulo (o que talvez não o fizesse ser de pronto reconhecido no Paraíso), e nós ainda guardando nos ouvidos o bulício vesperal do instante em que, aberta a porta do grupo escolar, as crianças escoavam para a praça e se perdiam nas escurentas ruas tortuosas.
O palacete branco vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor. Além das portas fechadas, das presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das dálias, do fino palor dos azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um universo de opulência, que a nossa fantasia de meninos pobres mal podia imaginar. A tarde transcurecia; o portão fechado validava-se como o brasão de uma existência que, terminados os diálogos inevitáveis de seu ofício de grande comerciante sempre atarefado e vigilante, suspendia qualquer tráfico com as mesquinharias diurnas, igual a um navio que, após todo o baixo ritual da estiva, readquire a sua dignidade perdida sulcando o mar sem amarras.
Era o palácio de Serafim Costa. E o nome, a magia desse nome que ocupou toda a minha infância, e era o preâmbulo mágico das encantações, demorava-se em mim, .solfejando-se no ar eternamente perfumado pelo Oceano. Meu pai, então guarda-livros de um armazém de tecidos, conhecia Serafim Costa, e nos mostrava a sua residência. "Aqui mora Serafim Costa." Não nos nomeava uma forma definida de casa (sobrado, bangalô, palacete); e certo aquela moradia, uma das mais luxuosas da pequena cidade, refugia às denominações irreversíveis. Ignoro se Serafim Costa era alagoano ou um dos muitos imigrantes portugueses que, estabelecidos em Maceió, enriqueceram em tecidos ou em secos e molhados e terminaram comendadores — mas em seu palacete, na exuberância do jardim equatorial, no chão assombrado de árvores enlanguescidas pelo mormaço, havia algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota e avoengueira, como que a reprodução de antiga planta deixada do outro lado do mar e tacitamente reconstruída pela poupança e ambição do imigrante afortunado. Por isso, meu pai dizia aqui, querendo assim significar tudo o que era o império de Serafim Costa: as grades do jardim, os sinuosos canteiros colmeados de folhas e flores, os calangros e insetos, a água espatifada de uma fonte, os familiares que não apareciam às janelas, talvez para não confundir a visão de todos os que, como eu, o imaginavam reinando solitário em sua mansão, sem quinhoar ostensivamente com ninguém o resultado, de sua vida vitoriosa, feita de zelo e siso.
Embora eu não tivesse conhecido Serafim Costa, tornou-se-me familiar aos olhos um dos empregados de seu armazém. Era um velho corcunda, de fiapos brancos na cabeça calva, e devoto. Alguns anos depois, quando já tínhamos deixado de morar no sítio e passáramos a habitar numa rua do centro da cidade, estávamos todos, no sótão, assistindo à passagem de uma procissão que enchia a monotonia da tarde de domingo. Súbito, identifiquei na multidão o corcunda velho e devoto, e exclamei:
— Olhe o Serafim Costa!
A exclamação fez espécie a meu pai, que se virou para mim, surpreendido com a notícia. Seu ar era mais do que de dúvida — decerto eu dissera uma heresia, que reclamava pronta corrigenda ou a aura de uma prova irretocável. Com o dedo, apontei o velho corcunda que, de casimira preta na tarde de sol fugidiço, vencia, na aglomeração, os. paralelepípedos da rua. Meu pai reconheceu o empregado de Serafim Costa e exclamou, de bom rosto:
— Não é o Serafim Costa — e achou engraçado que eu confundisse o empregado humilde e devoto com o poderoso e mitológico patrão.
E assim ele ficou sendo, para mim, sempre e eternamente, um nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou junto ao mar lampejante, eu repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se ele fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que os costados dos navios pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira lição de poesia, essa infindável soletração do absoluto.
Muitos anos depois, desintegrada a infância, e já envolto numa névoa de estrangeiro, voltei à curva do bonde. Era ali que morava Serafim Costa — o portão fechado era sinal de que ele estava lá dentro, movendo-se possivelmente entre frutas maduras, gatos sonolentos e bojudas porcelanas azuis. Trinta anos se tinham passado desde os dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada, o universo branco e verde estriado de agudas grades negras e manchas róseas. O invisível Serafim Costa já deveria estar morando, e de há muito, em outra alvacenta morada... Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias de mármore, as altas janelas que pareciam sotéias. E chamei: Serafim Costa!
Chamei a quem, a que? E ocorreu o milagre. O nome ficou suspenso no jardim onde se ocultava uma cobra papa-ovo, depois voou pelos ares, como um pássaro; chocou-se contra os costados dos cargueiros que, no destempo hirto, desembarcavam em Maceió os caixotes das mercadorias encomendadas, do outro lado do Oceano, pelo valimento comercial de Serafim Costa; e, metamorfoseado em eco, voltou de novo aos meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia de um nome que não precisa mais de figura ou de anedota; e se tornou para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto.
E, assim, obtive a resposta.

O texto acima foi extraído da revista "Ficção" nº 06, Rio de Janeiro, junho/1976, pág. 46.

PROJETO RELEITURA

AMOR PELOS LIVROS

QUANDO DÓI UMA SAUDADE
Nei Lopes




Um dos maiores violonistas anônimos do subúrbio carioca foi o Athaúde — com "th", como exigia. Mas o que tinha de cobra, tinha de baixo astral.
Papo bom pra ele, era doença, epidemia, catástrofe. E a introdução preferida de seus papos era a célebre "sabe quem morreu?".
Essa opção preferencial pelo fúnebre Athaúde levava consigo em seus endereços, na medida em que o tempo ia passando e seus já parcos recursos iam escasseando ainda mais. Tanto que da rua Real Grandeza, onde nasceu, foi morar no Catumbi, depois no Caju, depois em lnhaúma, depois na Cacuia, depois no lrajá (na Freguesia, que no Pau-Ferro todo mundo é vivo!), depois em Ricardo de Albuquerque... até seu repouso eterno no Murundu, em Realengo.
Mas o caso é que, debaixo daquela sua mortalha roxa e amarela, Athaúde também usava uma máscara deste tamanho. E isto porque sabia-se quase um Zé Menezes — tocava todos os instrumentos de corda, "menos harpa e relógio", como, passando pelo tenor, que a gente chamava de "viola americana" e pelo banjo, que Seu Acácio da Venda achava que era um "pandeiro de rabo". E, aí, sabendo que abafava, ficava dando uma de virtuose pobre-coitado:
— Eu não toco nada! Você precisava ver meu finado irmão...
Esse irmão falecido, que a gente nunca soube ao certo se era uma saudade ou uma desculpa, não saía da nossa roda — é óbvio — de choro: "Lamento", "Tristezas do Sólon", "Saxofone Por Que Choras?", "Bonifrates de Muletas", "Chorando baixinho", "Quanto Dói Uma Saudade", "Tristeza de Um Violão", eram as preferidas do Athaúde, naquele seu interminável in memoriam.
— Porra, toca "Brasileirinho", ô Ataíde ! — esbravejou o Fornalha já cheio de timbuca, naquela extemporânea e blasfema roda formada, de improviso, na Sexta-feira da Paixão.
— "Ataíde", não! A—tha-ú-de! Com "th". E "Brasileirinho" é choro de cavaco — fez doce o lúgubre instrumentista mascarado.
— Então, pega o cavaco, ô mão de vaca! Tu brinca nas onze, que eu sei! Deixa de modéstia, ô Segóvia! botou pilha o Jorge Bagunça, debochado como ele só. Mas o baixo astral foi irredutível:
— Quando eu perdi meu irmão, jurei nunca mais pegar no cavaquinho.
Acontece que um dia — sei lá o que houve, se ganhou no bicho, se comeu alguém, se bebeu, se fumou, se cheirou — o Athaúde chegou no boteco do Zé Calcinha completamente diferente. Ria, falava com todo mundo, chegou até a passar a mão na bunda da Dona Alzira que, como sempre, não entendeu nada. E, pra acabar com o baile, tomou o cavaco da mão do Vavá, riscou o tom e solou um "Brasileirinho" com uma rapidez, uma destreza e uma alegria nunca vistas, de São Cristóvão a Padre Miguel.
Foi nessa que o sacana do Jorge Bagunça chegou, não acreditou no que viu, pediu uma Faixa Azul, encheu um copo, tomou um gole, limpou a espuma do bigode (naquele tempo cerveja tinha espuma), foi-se chegando devagarzinho pra roda e, no último acorde, no fecha, naquela do "tchan-tchan", berrou na alça da orelha do Athaúde:
— Irmão desnaturado !!!!!!!!!!!!

Texto extraído do jornal "Direitos Já", órgão oficial da AMAR—SOMBRAS — Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes