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Richard Clayderman - Matrimonio De Amor .mp3
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terça-feira

O AMOR PELOS LIVROS

Uma encomenda em Shinjuku-ku
Artur Xexéo


A Copa do Mundo nunca foi em Tóquio. Mas eu fui. A equipe toda viajou para Yokohama, onde se realizaria a final de 2002 entre a seleção brasileira e a da Alemanha. Eu ganhei de presente do jornal uma semana em Tóquio. A viagem de trem a Yokohama não demorava nem uma hora. E, em Tóquio, eu teria mais assunto para a minha coluna. Além disso, eu poderia cumprir a única tarefa que tinha levado de casa: comprar na livraria Books Rose Shirogane-no-Hana,uma revista em quadrinhos de Gengoroh Tagame. Tinha levado até o endereço. Não deveria ser difícil .Só tinha me esquecido de que, em Tóquio, não há endereços menos endereços do jeito que a gente conhece. As ruas não têm nome. E, para um ocidental, encontrar uma livraria em Tóquio, mesmo com o endereço na mão, pode se tomar uma missão difícil ou mesmo uma missão impossível.
A experiência em outras cidades asiáticas já havia demonstrado que a tarefa poderia ser complicada. Em Ulsan, quis ir na loja oficial da Copa do Mundo, onde eram vendidas todas as bugigangas com o logotipo do campeonato mundial de futebol. Sabe qual era o endereço? Pertinho do Hotel Koreana. Não adiantava tentar uma direção mais específica. Qualquer anúncio da loja, qualquer informação oficial, qualquer morador da cidade dizia a mesma coisa: a loja ficava pertinho do Hotel Koreana. Um dia, peguei um táxi e, cheio de preocupação, repeti as palavras mágicas: Hotel Koreana. O taxista nem se perturbou. Sem insegurança alguma me deixou em frente à portaria do hotel. Logo achei a loja que procurava. Ficava pertinho.1'
Assim que cheguei a Tóquio, comprei um guia do rnetrô que trazia na contracapa o anúncio de um restaurante especializado em tempurá. Sabe qual era o endereço? "Entre a loja de departamentos Mitsukoshi e a loja de departamentos Matsuzakaya." Não dava para ser mais específico? Claro. Ficava no bairro de Ginza. Só isso? Só isso. Em Ginza, entre a Mitsukoshi e a Matsuzakaya. Não tinha como errar.
Eu sei que eles possuem uma cultura milenar, e, durante toda a minha estada em Tóquio, não vi um só japonês com cara de perdido. Mas, para quem passou a vida inteira colecionando nomes de ruas, números de prédios e códigos de endereçamento postal, encontrar um endereço na Ásia é uma questão perturbadora.
A minha livraria tinha um endereço misterioso: 2,14,11 Shinjuku, Shinjuku-ku. Rapidamente descobri que Shinjuku é urn bairro, e que "ku" é bairro em japonês. Não tinha a menor noção de por que Shin juku aparecia duas vezes no endereço. Mas tinha certeza de que a tal livraria ficava no bairro de Shinjuku. Ou em Shinjuku. Não era difícil chegar lá de metrô. Existe uma Estação Shinjuku. O problema é que o bairro é enorme. Imagine o que é descer na Estação Ipanema, no Rio, ou na Estação Vila Madalena, em São Paulo, e sair procurando uma livraria com a única informação de que ela fica em Ipanema ou na Vila Madalena. Ah, sem falar português, é claro. Passei um dia inteiro rodando feito um peru embriagado pelas ruas de Shinjuku. Não havia placas. Não havia números nos prédios. Que diabos podia ser aquele 2, 14, 11? Descobri a área que concentra o maior número de cinemas da cidade. Aqueles cinemões antigos, com entrada na calçada e cartazes gigantescos dos filmes em exibição. Logo na saída da estação, me vi numa praça lotada de moradores do bairro que acompanhavam num telão de alta definição as corridas de cavalo. Numa esquina, experimentei um sushi bar bem baratinho e com peixes de ótima qualidade. Havia um quarteirão inteiro com o que parecia ser a região de clubes pornôs mais quentes do Japão. Mas nem passei perto da misteriosa livraria. Para falar a verdade, não passei perto de livraria alguma. Talvez houvesse um quarteirão só de livrarias em Shinjuku. Mas onde?
Liguei para o Brasil para expor o meu fracasso e confessar que estava desistindo da missão. Em troca, recebi mais uma dica: o telefone da livraria. Percebi que não seria fácil me livrar da tarefa. Liguei para a loja e pedi uma indicação mais precisa de como chegar lá.
— É fácil — respondeu-me um balconista. — É só sair da Estação de Shinjuku pelo portão Leste e andar 15 minutos em direção à loja Isetan.
— É só isso.
— Vem cá, em 15 minutos, um jovem de vinte anos percorre uma distância muito maior do que a percorrida por um velho de oitenta anos. Eu estou no meio desse caminho. Será que meus 15 minutos são suficientes para chegar à loja?
— Ah, então conta vinte minutos.
Desisti. Devia haver uma maneira melhor de se chegar lá. 0 pior era a dica de sair pelo portão Leste. Isso significava que deveria ter também um portão Oeste. E talvez um portão Sul e um portão Norte. Shinjuku-ku era muito maior do que eu imaginava. Será muito difícil para a prefeitura de Tóquio batizar as ruas da cidade? Garanto que a cidade iria economizar papel. Gasta-se muito papel em Tóquio. Para desenhar mapas. Não há endereço em Tóquio sem mapa. Nos anúncios de jornal, nos cartões de visita, nos folhetos de propaganda, há sempre um mapinha indicando como se chega lá. Há também aqueles três números enigmáticos como no endereço da livraria que eu não estava achando. Eles tinham que servir para alguma coisa.
Paulo Coelho, que algumas crônicas atrás tinha sido meu assessor especial para malas na Ásia, tornou-se imediatamente meu assessor especial para decifrar endereços em Tóquio. E mandou um e-mail:
"A livraria deve se chamar Kinokuniya, porque tem todos os livros do mundo. E tem uma filial em Shin-juku. Portanto: esquece aquela praça do telão, olha em volta, vai ver um miniEmpire State Building (na verdade, sede da DoCoMo); caminhe naquela direção, vencendo todos os obstáculos; irá dar em um rio de aço, ou seja, um lugar onde correm trens e metrôs, no lugar de água; de um lado, tem uma série de cafés, do outro, uma espécie de píer para admirarmos o rio de aço; vá (ou continue) até o final do píer. Ali está a livraria."
Tive que decepcionar o mago, mas não era a Kinokuniya que eu procurava. Como já expliquei, era a Books Rose. Mas ali existia ainda uma livraria com todos os livros do mundo? Tinha que achar essa também. E um miniEmpire State Building? Como é que eu tinha perdido isso? E mais um rio de aço? Pelo jeito, eu nunca mais iria sair de Shinjuku-ku. Mesmo que não encontrasse a minha livraria.
Em dois dias de pesquisas, descobri que o morador de Tóquio se guia pela localização de estações de trem, lojas de departamento, praças e coisas assim. Mas aqueles três números misteriosos deveriam servir para, pelo menos, facilitar a vida dos carteiros. Venci pela insistência. Matei a charada.
Algumas esquinas de Tóquio têm grandes cartazes que mapeiam as ruas do bairro. Nesses mapas, a gente percebe que 0 bairro é dividido em regiões numeradas. Essa regiões são divididas em quarteirões também numerados. E cada quarteirão, enfim, tem seus edifícios numerados (só os números dos prédios não aparecem nos mapas). Resumindo: com a ajuda do endereço — 2,14, 11 Shinjuku, Shinjuku-ku — a minha livraria podia ser localizada no mapa. Ela ficava no 11º prédio, do quarteirão 14, na região 2 de Shinjuku. Ufa! Copiei num papel informações do tipo "seguir em frente, atravessar cinco ruas, virar à direita, andar mais dois quarteirões, contar 11 prédios"... achei!
E aí começou outro problema. Na verdade, o tal Shirogane-no-Hana, de Gengoroh Tagame,não era uma revista em quadrinhos, mas um livro. Para ser mais específico, um livro em três volumes. Sendo mais detalhista ainda, cada volume tinha 299 páginas. O peso da minha mala aumentou consideravelmente. Mas eu voltei para casa com a encomenda.

O texto acima foi extraído do livro "O Torcedor Acidental", editora Rocco, 2010 - pág. 41.

Projeto Releituras

quarta-feira

AMOR PELOS LIVROS

Paisagem de interior
Jessier Quirino






Matuto no mêi da pista
menino chorando nu
rolo de fumo e beiju
colchão de palha listrado
um par de bêbo agarrado
preto véio rezador
jumento jipe e trator
lençol voando estendido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.




Três moleque fedorento
morcegando um caminhão
chapéu de couro e gibão
bodega com surtimento
poeira no pé de vento
tabulêro de cocada
banguela dando risada
das prosa do cantador
buchuda sentindo dor
com o filho quase parido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.


Bêbo lascando a canela
escorregando na fruta
num batente, uma matuta
areando uma panela
cachorro numa cadela
se livrando das pedrada
ciscador corda e enxada
na mão do agricultor
no jardim, um beija-flor
num pé de planta florido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.


Mastruz e erva-cidreira
debaixo dum jatobá
menino querendo olhar
as calça da lavadeira
um chiado de porteira
um fole de oito baixo
pitomba boa no cacho
um canário cantador
caminhão de eleitor
com os voto tudo vendido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.


Um motorista cangueiro
um jipe chêi de batata
um balai de alpercata
porca gorda no chiqueiro
um camelô trambiqueiro
avelós e lagartixa
bode véio de barbicha
bisaco de caçador
um vaqueiro aboiador
bodegueiro adormecido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.


Meninas na cirandinha
um pula corda e um toca
varredeira na fofoca
uma saca de farinha
cacarejo de galinha
novena no mês de maio
vira-lata e papagaio
carroça de amolador
fachada de toda cor
um bruguelim desnutrido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.


Uma jumenta viçando
jumento correndo atrás
um candeeiro de gás
véi na cadeira bufando
radio de pilha tocando
um choriço, um manguzá
um galho de trapiá
carregado de fulô
fogareiro abanador
um matador destemido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.


Um soldador de panela
debaixo da gameleira
sovaqueira, balinheira
uma maleta amarela
rapariga na janela
casa de taipa e latada
nuvilha dando mijada
na calçada do doutor
toalha no aquarador
um terreiro bem varrido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.


Um forró de pé de serra
fogueira milho e balão
um tum-tum-tum de pilão
um cabritinho que berra
uma manteiga da terra
zoada no mêi da feira
facada na gafieira
matuto respeitador
padre, prefeito e doutor
os home mais entendido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.


PROJETO RELEITURA

terça-feira

O AMOR PELOS LIVROS

AUTO-RETRATO COM A MUSA


Vasco Graça Moura


1.
vejo-me ao espelho: a cara
severa dos sessenta,
alguns cabelos brancos,
os óculos por vezes
já mais embaciados.


sobrancelhas espessas,
nariz nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda,
golpe breve no queixo
(andanças da gilette).


ia a passar fumando
mais uma cigarrilha
medindo em tempo e cinza
coisas atrás de mim.
que coisas? tantas coisas,


palavras e objectos,
sentimentos, paisagens.
também pessoas, claro,
e desfocagens, tudo
o que assim se mistUra


e se entrevê no espelho,
tingindo as suas águas
de um dúbio maneirismo
a que hoje cedo. e fico
feito de tinta e feio.


2
quem amo o que é que pode
fazer deste retrato?
nem sabê-lo de cor,
nem tê-lo encaixilhado,
nem guardá-lo num livro,
nem rasgá-lo ou queimá-lo,
mas pode pôr-se ao lado
e ter prazer ou pena
por nos achar parecidos
ou não achar. quem amo


não fica desenhado,
fica dentro de mim
e é quando mais me apago
e deixo de me ver
e apenas me confundo,


amador transformado
na própria coisa amada
por muito imaginar.
assim nem john ashberry,
nem o parmegianino,


nem espelho convexo,
nem mesmo auto-retrato.
só uma sombra que é
na sombra de quem amo
provavelmente a minha.


3
quem amo tem cabelos
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço


tal porte do pescoço
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar,


nem riso tão contente,
contido e comovente,
nem tão discretos gestos,
nem corpo tão macio
quem amo tem feições


de uma beleza grave
e música na alma
flutua nas volutas
de um madrigal antigo
em ondas de ternura.

é quando eu sinto a musa
pousando no meu ombro
sua cabeça, assim
me enredo horas a fio
e fico a magicar.


(mantida a grafia original)






Poema extraído da revista “Inimigo Rumor” nº 12, editora 7Letras – Rio de Janeiro, 1º semestre de 2002, pág. 03.


Fonte: Projeto Releitura

quinta-feira

O AMOR PELOS LIVROS

Intimidade
Edla van Steen


 
Para mim esta é a melhor hora do dia — Ema disse, voltando do quarto dos meninos. — Com as crianças na cama, a casa fica tão sossegada.
— Só que já é noite — a amiga corrigiu, sem tirar os olhos da revista.

Ema agachou-se para recolher o quebra-cabeça esparramado pelo chão.

— É força de expressão, sua boba. O dia acaba quando eu vou dormir,

isto é, o dia tem vinte e quatro horas e a semana tem sete dias, não está certo? — descobriu um sapato sob a poltrona. Pegou-o e, quase deitada no tapete, procurou o par embaixo dos outros móveis. — Não sei por que a empregada não reúne essas coisas antes de ir se deitar — empilhou os objetos no degrau da escada. — Afinal, é paga para isso, não acha?
— Às vezes é útil a gente fechar os olhos e fingir que não está notando os defeitos. Ela é boa babá, o que é mais importante.

Ema concordou. Era bom ter uma amiga tão experiente. Nem precisa ser da mesma idade — deixou-se cair no sofá — Bárbara, muito mais sábia. Examinou-a a ler: uma linha de luz dourada valorizava o perfil privilegiado. As duas eram tão inseparáveis quanto seus maridos, colegas de escritório. Até ter filhos juntas conseguiram, acreditasse quem quisesse. Tão gostoso, ambas no hospital. A semelhança física teria contribuído para o perfeito entendimento? "Imaginava que fossem irmãs", muitos diziam, o que sempre causava satisfação.

— O que está se passando nessa cabecinha? — Bárbara estranhou a amiga, só doente pararia quieta. Admirou-a: os cabelos soltos, caídos no rosto, escondiam os olhos cinza, azuis ou verdes, conforme o reflexo da roupa. De que cor estariam hoje? — inclinou-se — estão cinza.

Ema aprumou o corpo.

— Pensava que se nós morássemos numa casa grande, vocês e nós... Bárbara sorriu. Também ela uma vez tivera a idéia — pegou o isqueiro e acendeu dois cigarros, dando um a Ema, que agradeceu com o gesto habitual: aproximou o dedo indicador dos lábios e soltou um beijo no ar.

— As crianças brigariam o tempo todo.

Novamente a amiga tinha razão. Os filhos não se suportavam, discutiam por qualquer motivo, ciúme doentio de tudo. O que sombreava o relacionamento dos casais.

— Pelo menos podíamos morar mais perto, então.

Ema terminava o cigarro, que preguiça. Se o marido estivesse em casa seria obrigada a assistir à televisão, porque ele mal chegava, ia ligando o aparelho, ainda que soubesse que ela detestava sentar que nem múmia diante do aparelho — levantou-se, repelindo a lembrança. Preparou uma jarra de limonada. Por que todo aquele interesse de Bárbara na revista? Reformulou a pergunta em voz alta.

— Nada em especial. Uma pesquisa sobre o comportamento das crianças na escola, de como se modificam as personalidades longe dos pais.

No momento em que Ema depositava o refresco na mesa, ouviu-se um estalo.

— Porcaria, meu sutiã arrebentou.

— A alça?

— Deve ter sido o fecho — ergueu a blusa — veja.

Bárbara fez várias tentativas para fechá-lo.

— Não dá, quebrou pra valer.

Ema serviu a limonada. Depois, passou a mão pelo busto.

— Você acha que eu tenho seio demais?

— Claro que não. Os meus são maiores...

— Está brincando — Ema sorriu e bebeu o suco em goles curtos, ininterruptos.

— Duvida? Pode medir...

— De sutiã não vale — argumentou. — Vamos lá em cima. A gente se despe e compara — aproveitou a subida para recolher a desordem empilhada. Fazia questão de manter a casa impecável. Bárbara pensou que a amiga talvez tivesse um pouco de neurose com arrumação.

Ema acendeu a luz do quarto.

— Comprou lençóis novos?

— Mamãe mandou de presente. Chegaram ontem. Esqueci de contar. Não são lindos?

— São.

— A velha tem gosto — Ema disse, enquanto se despia em frente ao espelho. Bárbara imitou-a.

É muito bonita — Ema reconheceu. Cintura fina, pele sedosa, busto rosado e um dorso infantil. Porém, ela não perdia em atributos, igualmente favorecida pela sorte. Louras e esguias, seriam modelos fotográficos, o que entendessem, em se tratando de usar o corpo — não é, Bárbara?

— Decididamente perdi o campeonato. Em matéria de tamanho os seus seios são maiores do que os meus — a outra admitiu, confrontando.

Carinhosa, Ema acariciou as costas da amiga, que sentiu um arrepio.

— O que não significa nada, de acordo? — deu-lhe um beijo.

— Credo, Ema, suas mãos estão geladas e com este calor...

— É má circulação.

— Coitadinha — Bárbara esfregou-as vigorosamente. — Você precisa fazer massagens e exercícios, assim — abria e fechava os dedos, esticando e contraindo na palma. — Experimente.

Eram tão raros os instantes de intimidade e tão bons. Conversaram sobre as crianças, os maridos, os filmes da semana. Davam-se maravilhosamente — Bárbara suspirou e se dirigiu à janela: viu telhados escuros e misteriosos. Ela adoraria ser invisível para entrar em todas as casas e devassar aquelas vidas estranhas. Costumava diminuir a marcha do carro nos pontos de ônibus e tentar adivinhar segredos nos rostos vagos das filas. Isso acontecia nos seus dias de tristeza. Alguma coisa em algum lugar, que ela nem suspeitava o que fosse, provocava nela uma sensação de tristeza inexplicável. Igual à que sente agora. Uma tristeza delicada, de quem está de luto. Por quê?

— Que horas são? — Ema escovava o cabelo.

— Imagine, onze horas. Tenho que sair correndo.

— Que pena. Não sei por que fui pensar em hora. Fique mais um pouco.

— É tarde, Ema. Tchau. Não precisa descer.

— Ora, Bárbara... deixa disso — levou a amiga até o portão.

— Boa noite, querida. Durma bem.

— Até amanhã.

Ema examinou atentamente a sala, a conferir, pela última vez, a arrumação geral. Reparou na bandeja esquecida sobre a mesa, mas não se incomodou. Queria um minutinho de... ela apreciava tanto a casa prestes a adormecer — apagou as luzes. A noite estava clara, cor de madrugada pensou, sentando no sofá. Um sentimento de liberdade interior brotava naquele silêncio. Um sentimento místico, meio alvoroçado, de alguém que, de repente, descobrisse que sabe voar. Por quê?

O texto acima, publicado em "O Prazer é Todo Meu — Contos Eróticos Femininos", seleção de Márcia Denser para a Editora Record — Rio de Janeiro, 1985, consta também do livro "Os cem melhores contos brasileiros do século", seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 447.

PROJETO RELEITURA

quarta-feira

O AMOR PELOS LIVROS

Desconcerto
Carlos Nascimento Silva





— Papai Noel não existe — disse Ninico, baixinho, concentrado no fundo do copo de conhaque Napoleão.



Já eram onze horas da noite e os quatro, em volta da pequena mesa de tampo de mármore mal polido, terminavam a quinta rodada, um pouco sonolentos, meio nostálgicos pelo passamento da data, o bar vazio de fregueses, o Joaquim da Maria a cabecear cochilos sobre o alto banco de madeira, por trás do balcão.



— O quê que você disse? — assustou-se Feliciano, levantando a cabeça para olhar o amigo — Que Papai Noel não existe? O que você quer dizer com isso?



— Ele quer dizer que Papai Noel não existe — confirmou Mariano, tautológico, os olhos vidrados, mirando de esguelha a luz amarelada do poste, no outro lado da rua — Ora, você não sabe que o Ninico adora afirmações controvertidas? Ele sabe muito bem que não pode provar isso. E só provocação.



— Não... eu acho mesmo que não existe. Não é polêmica, não, só que ele não existe — confirmou Ninico mansamente, ainda olhando o fundo do copo.



— Deixa de bobagem, isso você sabe desde os cinco anos! Feliciano, terra a terra, evitando a armadilha da filosofia barata de Mariano.



— Tá bom, se vocês querem passar a noite de Natal dizendo coisas sem sentido, por que não? — Mariano, cansado. — Eu não tenho ninguém me esperando em casa; nem vocês. Só o João. Mas vocês têm que concordar comigo que não se pode provar isso: nem afirmar, nem negar. Não de forma consistente — concluiu exato, taxativo.



— Como você coloca, em termos puramente lógicos, é claro que não. Mas você também vai ter que concordar que, nesses termos, o que se pode discutir é muita pouca coisa. Afinal, se você descarta o que não é passível de prova, o que se pode discutir? O que está provado? Mas isso, por definição, não dá margem à opinião, portanto, à discussão — Feliciano, perdendo a paciência com Mariano. — De mais a mais, isso é uma conversa, só isso, uma discordância entre duas pessoas que têm diferentes opiniões.



Mariano ia responder à aporia absurda, mas emburrou, e caiu um silêncio incômodo sobre a mesa. Amigos antigos, aquilo não era anormal em sua convivência diária. Cada qual conhecia, demasiadamente bem, o pensamento do outro, havia mais de vinte anos, o que permitia um entendimento rápido entre eles. Os desacordos eram conhecidos, paredes intransponíveis de há muito reconhecidas, respeitadas, ou talvez, apenas toleradas, meras impossibilidades interpessoais: convicções vivenciais, definiria Feliciano.



E foi, com surpresa, que os três ouviram João Pedroso dizer:



— Não, Ninico, você está errado. Todos vocês estão errados. Não só ele existe como pode ser provado. Quero dizer, eu posso provar, e outros, talvez, também.



Ninico tirou os olhos do copo, lentamente, discordante, suspeitoso. Os dois outros olharam o amigo sorrindo, suspicazes. Não era discordância, mas incredulidade ou, talvez, a expectativa de uma brincadeira do João. Mas o rosto do amigo estava sério, vincado.



— Ah! Pára com isso, João! Você também? — exclamaram ambos, rindo, com pequenas variações de palavras, mas a mesma significação.



João Pedroso olhou cada um dos amigos com o rosto tenso, amargurado, e não se deu ao trabalho de responder a qualquer deles, o pensamento vagueando por um mundo antigo, perdido, passado.



— Eu nunca contei isso a vocês. Nunca falei disso a ninguém, aliás. Só de pensar, já me faz sentir mal, como uma nuvem escura de tempestade, um certo mal-estar, algo maligno.



O ambiente da mesa mudara. A descontração da conversa se fora, deixando uma tensão progressiva nos corpos, no ar. A própria iluminação no bar, na rua, mudara, como que enfraquecida por uma queda de voltagem tão comum naquela cidadezinha. Ninico contraiu os músculos dos ombros, os intercostais, sem se dar conta. Os demais, mexeram-se nas cadeiras, incomodados, sem saber com o quê.



— Eu devia ter uns sete anos, por aí, e o colégio já se tinha encarregado de tirar algumas ilusões que minha mãe alimentara por toda a meninice. Esta não foi, certamente — disse João Pedroso com o ar sonhador de quem relembra a primeira infância — a última delas.



Ele já não se lembrava mais das circunstâncias exatas, das causas ou do motivo que o levara a fazer o comentário com a mãe, mostrando a sabedoria que adquirira longe do ninho que, afinal, o enganara com aquela mentirinha.



— Eu estava me mostrando, para minha mãe, orgulhoso de como eu já estava crescido, virando homenzinho. Não era uma recriminação a meus pais, nem nada parecido, e fiquei muito assustado com sua reação violenta, seus gritos que só terminaram com minhas lágrimas, abraços, beijos e pedidos de desculpa.



João Pedroso virou o resto do conhaque e olhou os amigos buscando encorajamento.



— Em resumo, minha mãe disse que o Natal só existia para quem acreditava nele. Era pegar ou largar, simples assim. Quem era bom, obedecia aos mais velhos e acreditava no que o Natal significava era recompensado com os presentes, mimos e doces que eu sempre conhecera. Em caso contrário, nada feito: a escolha era de cada um. E esse era o motivo pelo qual muitos meninos não acreditavam em Papai Noel, ou o inverso, como queiram.



João Pedroso pediu mais uma rodada de bebida, nesta altura muito bem-vinda, e contou que relatara aos colegas de colégio o que ouvira da mãe.



— Vocês podem imaginar como fui alvo das mais cruéis caçoadas no grupo escolar. Foi uma experiência bastante dura, dada minha idade. Não só riam de mim, me apontavam, no pátio da escola, como aquele que acreditava em Papai Noel e isso resultou num forte isolamento dentro do grupo.



É claro que o menino havia procurado diminuir o atrito insuportável. Naquela altura, a apostasia de suas crenças era o que menos o preocupava, mesmo que ele desconhecesse a palavra. Além disso, sua confiança na mãe estava abalada.



— Vocês entendem? Não era apenas uma questão de coragem moral, o que já é bem difícil para adultos quanto mais para uma criança pequena. Mas uma ruptura entre meu mundo primeiro, materno, e minhas crenças grupais, etárias, se vocês quiserem, enfim, do meu mundo, ou do mundo que se armava, não só à minha volta mas com minha participação, já que eu era parte integrante, ativa, dele.



A divisão era profunda, não pela questão em si, apenas, mas por tudo que significava. Afinal, aos sete anos não se tem senso crítico, e a cisão se tornou funda, sem termo médio que a diminuísse.



— De mais a mais — continuou João Pedroso — a forma como minha mãe colocara a questão, ou seja, em termos de crença, tornou impossível uma decisão. Claro, hoje eu posso ver isto com algum distanciamento. Mas naquela idade, eram pontos irreconciliáveis, um abismo de incerteza e indecisão que não podia ser aproximado. Enfim, uma polaridade insuportável que se estendia a toda matéria ética, estética, religiosa, abrangendo, mais tarde, todas minhas convicções sociais, políticas, econômicas. Em resumo, o mundo das idéias e das ações, como vocês mesmos colocavam o assunto, ainda há pouco.



— E então — perguntou Ninico, com seu jeito manso — como você saiu dessa?



— Não saí. Não havia como sair, e do meu ponto de vista infantil não só a questão não era nítida como seria a causa do mais completo desastre, dada a importância que o Natal tinha para mim, naquela época. Acho que minha aversão à data vem daí. Reparem nas implicações: ou me tornava um pária social, isto é, dentro da minha sociedade, a escola, meus amigos, ou minha mãe saberia de minha descrença, já que o Natal nada me reservaria, se ela tivesse razão. Mas o pior ainda não estava aí: não importava o que eu declarasse a uns e outros, a divisão permaneceria, interna, dentro de mim, mesmo que eu "quisesse" aceitar uma ou outra opinião, uma ou outra crença, já que era disto que se tratava. E então, a angústia foi excessiva e adoeci.



— Meu Deus, João, por que você não falou com sua mãe? Obviamente não tinha sido esta a intenção dela — apartou Feliciano. — Ou mesmo seu pai, um tio, avô.



— A criança tem sua lógica própria. A reação dos dois lados, minha mãe e os amigos, foi tão oposta que o assunto se tornou, tabu, proibido, para mim.



João Pedroso contou, então, como sua doença veio diminuir o conflito. Chegavam os primeiros dias de novembro e o médico o proibira de qualquer esforço, o que incluía sua ida à escola. Em casa, filho único, acamado nos primeiros dias pela febre nervosa, João Pedroso teve que enfrentar muitas horas de solidão e decorrente ensimesmamento. Filho obediente, ele queria muito acreditar no que a mãe lhe dissera, o que foi facilitado pela ausência dos colegas e amigos. Outra vez no ninho materno, a adequação ao movimento da casa, seus tempos, suas práticas, permitiram finalmente ao menino o retorno à cultura materna, matriarcal? E a doença se evaporou, como se jamais se houvesse instalado. A seqüência das férias consolidou seu melhor estado de saúde, e mesmo a aproximação do Natal não lhe trouxe maiores sobressaltos, uma vez que sua divisão interior quase desaparecera.
***
Cerca de meio século depois, João Pedroso saiu para o alpendre elevado, aonde raramente ia, tanto pelo vento cortante dos dias frios, como pela inclemência da luz, que galgava os céus, fronteira à fachada do sobrado nos dias de verão, e dirigiu-se à terceira coluna de tijolos ingleses envernizados. Contou sete blocos, de baixo para cima e, lentamente, sacou o pequeno tijolo, no silêncio da casa ainda adormecida. Apanhou algo que meteu no bolso da calça e voltou a encaixar o bloco em seu lugar, bem justo, sem deixar qualquer irregularidade que o diferenciasse dos demais.



A construção esquinada cavalgava um outeiro que lhe permitia sobrever, da rua em cotovelo que subia à esquerda, as casas menores, pouco acima do peitoril de suas janelas, enquanto à direita, telhados e beirais acompanhavam a íngreme descida. A quem passava, na rua, pouco mais lhe era permitido notar que a alta estante de livros, quase a atingir o teto de um dos cômodos, quando as pesadas cortinas não estavam corridas.



João Pedroso herdara do pai, na década de sessenta, o que a cidadezinha preguiçosa gostava de considerar sua mais bela construção, produto da corretora de café, então localizada no rés-do-chão do prédio, amanhada com proficiência e algum descortino comercial, desde os anos trinta.



Diferentemente do pai, João Pedroso nunca tivera a mesma capacidade, ou sua habilidade no jogo do comércio atacadista. Compras infelizes e vendas precipitadas tinham dilapidado o capital diligentemente acumulado, e a década de setenta viu a ruína do rendoso negócio paterno. Não que João Pedroso trabalhasse pouco ou mal. Ao contrário, a época adulta fora um nunca findar de trabalhos, esforços e preocupações cujos resultados, sempre negativos, haviam aportado no naufrágio mais completo. "Quase como uma maldição", repetia ao correr da vida, como um refrão ominoso, um dobre de finados. E então seu pensamento voltava ao pequeno pedaço de papel, cuidadosamente dobrado, metido sob o tijolo da sétima fileira da terceira coluna do alpendre.



Foi quando João Pedroso começou a jogar, na esperança de equilibrar o orçamento da casa, já que ao da firma não restava qualquer esperança. Da loteria estadual ao bingo, e deste ao bookmaker da cidade mais próxima, foi uma evolução tão rápida quanto danosa, desastrosa. A tentativa de sonegação fiscal da corretora de café, por um desses acasos improváveis, redundou numa multa que montava a quase dez vezes o valor do imposto, como uma pá de cal sobre a firma paterna.



A venda da parte inferior do prédio e suas instalações evitou mal maior, permitindo a João Pedroso manter a moradia no sobrado, embora o passadio fosse escasso e fortemente controlado. Móveis, roupas, enfim, qualquer despesa era eternamente, ou quase, protelada, ao custo de muito cuidado no uso de cada objeto, sentindo-se mesmo, na casa, a falta de qualquer comodidade que não viesse dos bons tempos. Ternos, gravatas, camisas sociais de colarinho engomado, o vinco das calças de tropical, os sapatos engraxados, tudo era alvo do trabalho cotidiano da mulher e duas pretas, retaguarda doméstica raramente entrevista entre o corredor e as áreas de serviço, partes da casa sem forro, construídas em telha-vã. O João Pedroso dos amigos era, por assim dizer uma ponta de iceberg, mostruário, vitrina da vida do sobrado e, por ele, a cidadezinha jamais saberia do real estado das finanças familiares. E assim ele arrastara os últimos anos, vivendo de pequenos expedientes, de despesas inexistentes.



Mas naquela manhã da véspera de Natal João Pedroso não estava preocupado com isto. Não dormira bem, rolando na vasta cama de casal que fora dos pais, ora puxando as cobertas até o pescoço, com arrepios de frio, ora empurrando-as para longe do corpo, em calores inusitados. E tão logo a luz cinzenta da manhã se filtrou pelas venezianas de madeira azul-claras, saltou do leito e, de camisolão e chinelas, dirigiu-se ao alpendre em silentes passos de gato. De posse do objeto demandado e, talvez porque o não tivesse tocado por mais de cinqüenta anos, meteu-o no vasto bolso sem lançar-lhe uma única mirada, dirigindo-se ao banheiro, para as abluções matinais.



Durante o café, enquanto passava uma vista ao jornal, João Pedroso sentia o pequeno papel — um bilhete? — como um objeto morno, no bolso do paletó, a pesar-lhe incomodamente o peito, e perguntou-se por que o pegara, após tantos anos, e com que finalidade.
***
— Bem, foi então que Alberto chegou — disse João Pedroso, baixinho, dando uma bicada no conhaque, sem mesmo se aperceber.



— Que Alberto, o Gaguinho da Maria Preta? — interrompeu Feliciano, mal contendo a curiosidade.



— Não, não é do tempo de vocês. O Alberto Monteiro era meu primo, por parte de pai. Moleque traquinas e malcriado, o Alberto era o terror de minha mãe e das criadas. Um ano mais velho que eu, era sempre quem inventava os malfeitos, as travessuras, quem começava as brigas e brincadeiras brutas, maldosas. Vocês sabem, cuspir, do sobrado, na cabeça dos passantes, prender barata viva entre a xícara e o pires da mamãe ou amarrar os cadarços dos sapatos da negrinha, por baixo da mesa. Toda a casa ficava em polvorosa, entre os malfeitos e as zangas e castigos. E, como não podia deixar de ser, em muitos eu embarcava, mesmo a contragosto. Enfim, mesmo assustado com sua ousadia, eu admirava o Alberto e me divertia, como qualquer criança, com as traquinadas que ele inventava.



Quando a Maria Preta correu como alma penada pelo meio da casa, embrulhada no lençol, por causa do calango que o Alberto colocara debaixo de seu travesseiro, a mamãe perdeu a paciência e nos decretou três dias de castigo, presos no quarto grande, sem revistas ou brinquedos. Saíamos só para as refeições, na sala de jantar, com papai e mamãe de cara feia e voltávamos para o "retiro espiritual", como ela dizia, a fim de que "puséssemos a mão na consciência", como "meninos de família" e não "bugres do mato".



Faltavam poucos dias para o Natal, mas não foram dias muito amargos, mesmo com a liberdade perdida, já que Alberto não sossegava, nem mesmo preso num quarto. Arremedava a mamãe, imitava a Maria Preta, tecia planos mirabolantes para quando saíssemos da "prisão", jurava vingança contra a negrinha que, segundo ele, fora a delatora, no episódio do lagarto.



— Enfim, apartou Mariano — uma criança normal.



— É claro, normal — sorriu João Pedroso pela primeira vez, desanuviado pela lembrança do primo — mas duvido que você ainda o classificasse dessa forma, caso ele passasse um dia em sua casa. Enfim, contei isso para vocês terem idéia de como era o Alberto, naquela época. E assim, ao final do segundo dia de castigo e como minha mãe mencionasse manhosamente o Natal a meu pai durante a refeição, quando voltamos ao nosso castigo contei ao Alberto o que ela me dissera sobre assunto tão palpitante. Alberto quase engasgou de tanto rir, de minha credulidade.



— Ô, João, Papai Noel são nossos pais! Ela te contou essa história pra você ser um bom menino, ficar quietinho e não encher a paciência dela. Ela me acha um bom menino? Eu acredito em Papai Noel? Então como você explica que eu ganhe presentes de Natal todo ano? A bola de futebol, a bicicleta, como você explica isso?



— Bem, é inútil dizer o quanto essa terceira guinada nas minhas crenças, em tão curto período de tempo, mexeu com a minha cabeça. Então ela tinha mesmo me enganado Pensei na vergonha que eu passara na escola, nas caçoadas, nos meus esforços para acreditar nela, nas minhas boas intenções e prometi, a mim mesmo, nunca mais ser tão crédulo, nem mesmo com meus pais. Prometi, também de mim para mim, sem nada dizer ao Alberto que, quando saíssemos do maldito quarto, ele não seria o único a inventar maldades. Só que eu teria mais cuidado, muito mais cuidado do que ele. Além de fazer as travessuras, eu cuidaria para não ser implicado nelas. E então meu prazer seria duplo, já que o castigo cairia sempre sobre outra pessoa. E por que não a negrinha que me fizera ficar trancado por três dias?



Assim, o último dia de castigo foi o mais prazeroso deles. Alberto, cansado de não fazer nada, se calara, emburrado, num canto, enquanto eu aproveitava para imaginar um monte de pequenas maldades com todos da casa mas, principalmente, como evitar que se pudesse saber a autoria do malfeito.



Aquela semana de Natal foi muito atribulada, lá em casa, para eles e para nós, e mamãe acabou telefonando ao tio para que fosse buscar o Alberto, pois que, com dois, ela já não estava agüentando. O primo se foi e, livre dele, eu pude armar meus álibis com mais facilidade. Ninguém entendeu como tanta coisa saía errado sem causa aparente. E foi um Natal realmente atabalhoado.



— E nunca te pegaram? — perguntou mansamente Ninico.



— Você quer dizer alguém lá de casa? Mamãe, papai, as empregadas? Não. Segundo eu pensava, eu já tinha sido apanhado, não é mesmo? E só podia me vingar não pagando pelo malfeito que viesse a cometer; esse era meu primeiro e último cuidado, ou não haveria vingança. Alguém mais, qualquer um, devia pagar o preço, desde que não fosse eu, ou as contas não seriam acertadas. Lembrem-se, eu me sentia credor de um mau pagador. O equilíbrio só viria no caso de, tendo sido mau, eu receber meu presente de Natal, como Alberto dissera que receberia.



— Em resumo, através de ações, não de palavras, você discutia ética com sua mãe — definiu Mariano.



— Não creio que tenha sido apenas isso — retrucou Feliciano. — Já não se tratava apenas de "provar" a existência ou não de Papai Noel, ou do espírito de Natal, como querem alguns, mas o valor prático do comportamento ético como fonte de justiça. A vingança, que equilibraria a balança, nos força a entrar no terreno da justiça, como compensação ao bem e ao mal, se entendi bem a sua reação infantil. E agora já não mais estamos no terreno da filosofia, mas da religião ou, como você disse no início da história, da crença.



— Mas eu creio que se tratou sempre disto, não? Quero dizer, a história de João. A discussão ética foi sempre uma ferramenta, não um fim em si mesmo — raciocinou Ninico em sua voz mansa — desde que eu disse que Papai Noel não existia. Só não entendo como você pretende provar a existência dele.



— Bem, me deixem terminar a história e vocês vão entender — retrucou João Pedroso, com rosto amargurado.



As lembranças infantis das traquinadas já estavam longe, como ficou claro para todos,e o ambiente tenso voltou a tomar conta dos amigos, do bar, da noite.



— A noite de Natal chegou e eu fui me deitar cedo, cheio de expectativa, como vocês podem imaginar. Não sem antes, no entanto, realizar todos os ritos anuais ensinados por minha mãe. E deles fazia parte uma grande meia pendurada, símbolo da gratidão, a mão aberta à oferenda. Escolhi a maior de todas, a meia de futebol de que eu tanto gostava e prendi-a em um prego na parede da sala. Custei muito a pegar no sono em meio a tanta excitação. Afinal, tratava-se mais do que de um simples Natal. Por trás daquilo, houvera muito sofrimento. Aos sete anos, porém, não há insônia que dure mais de cinco minutos, e eu dormi como um anjo até manhã alta, o sol entrando pelas venezianas, zangado por ter que se espremer tanto, como minha mãe dizia, me chamando de preguiçoso. Já acordei pulando da cama, desinsofrido, e corri descalço, de pijama, à sala, onde ficava a árvore de Natal. Não havia nada para mim sob a árvore enfeitada. Eu não pude acreditar e olhei, então, para onde deixara a minha meia de futebol. Mas tampouco ela estava lá. Ficou apenas um pedaço de papel, espetado no prego da parede, com um poema cujo texto é o seguinte:



Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que, só para mim
Anda o mundo concertado.



— O Desconcerto do Mundo — gritou Ninico — a mensagem de Camões é clara: não há justiça no mundo, exceto para ele, paranóico que era. Como vocês vêem, eu estava certo. Papai Noel não existe — gargalhou triunfante.



— Neste caso — gritou Feliciano, acima da risada de Ninico — quem espetou o bilhete no prego e levou a meia? Você se ateve ao significado do bilhete, não à sua existência! Sua análise foi parcial, então Papai Noel existe! — concluiu vitorioso.



— Pronto, voltamos à discussão maluca! — Mariano, cada vez mais cético. — Que importa quem colocou o bilhete no prego? E se foi a mãe ou o pai de João, como castigo por seus atos? Ou seja quem for? Como deduzir daí a existência de Papai Noel?



— Pelo próprio bilhete, meu amigo. Ele está escrito num dialeto esquimó oriental que, segundo o lingüista da universidade, só é falado em determinada região do Pólo Norte — disse João Pedroso cansado, o rosto tenso, colocando o papel amarelado pelo tempo sobre o mal polido mármore do tampo da mesa do café.




O texto acima foi extraído do livro "Contos para um Natal brasileiro", Relume Dumará / Ibase — Rio de Janeiro, 1996, pág. 73.

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sábado

O AMOR PELOS LIVROS

Esse punhado de ossos
Ivan Junqueira
A Moacyr Felix

Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esguio e bailarino,
como se move o sangue numa veia.
Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro e de mais fino.
Foram damas tais ossos, foram reis,
e príncipes e bispos e donzelas,
mas de todos a morte apenas fez
a tábua rasa do asco e das mazelas.
E ai, na areia anônima, eles moram.
Ninguém os escuta. Os ossos choram.

O poema acima, publicado em "Poemas Reunidos", Record - Rio de Janeiro, 1999, foi extraído do livro "Os cem melhores poemas brasileiros do século", Objetiva - Rio de Janeiro, 2001, pág. 317, seleção de Ítalo Moriconi.

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terça-feira

O AMOR PELOS LIVROS

AUTO-RETRATO COM A MUSA
Vasco Graça Moura


1.


vejo-me ao espelho: a cara
severa dos sessenta,
alguns cabelos brancos,
os óculos por vezes
já mais embaciados.




sobrancelhas espessas,
nariz nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda,
golpe breve no queixo
(andanças da gilette).


ia a passar fumando
mais uma cigarrilha
medindo em tempo e cinza
coisas atrás de mim.
que coisas? tantas coisas,


palavras e objectos,
sentimentos, paisagens.
também pessoas, claro,
e desfocagens, tudo
o que assim se mistUra


e se entrevê no espelho,
tingindo as suas águas
de um dúbio maneirismo
a que hoje cedo. e fico
feito de tinta e feio.


2


quem amo o que é que pode
fazer deste retrato?
nem sabê-lo de cor,
nem tê-lo encaixilhado,
nem guardá-lo num livro,


nem rasgá-lo ou queimá-lo,
mas pode pôr-se ao lado
e ter prazer ou pena
por nos achar parecidos
ou não achar. quem amo


não fica desenhado,
fica dentro de mim
e é quando mais me apago
e deixo de me ver
e apenas me confundo,


amador transformado
na própria coisa amada
por muito imaginar.
assim nem john ashberry,
nem o parmegianino,


nem espelho convexo,
nem mesmo auto-retrato.
só uma sombra que é
na sombra de quem amo
provavelmente a minha.


3


quem amo tem cabelos
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço


tal porte do pescoço
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar,


nem riso tão contente,
contido e comovente,
nem tão discretos gestos,
nem corpo tão macio
quem amo tem feições


de uma beleza grave
e música na alma
flutua nas volutas
de um madrigal antigo
em ondas de ternura.


é quando eu sinto a musa
pousando no meu ombro
sua cabeça, assim
me enredo horas a fio
e fico a magicar.


(mantida a grafia original)

Poema extraído da revista “Inimigo Rumor” nº 12, editora 7Letras – Rio de Janeiro, 1º semestre de 2002, pág. 03.


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quarta-feira

O AMOR PELOS LIVROS

A FUNDA DE DAVI
Augusto Monterroso


Era uma vez um menino chamado Davi N., cuja pontaria e habilidade no manejo da atiradeira despertavam tanta inveja e admiração entre seus amigos da vizinhança e da escola, que viam nele — e assim comentavam entre si quando os pais não podiam escutar — um novo Davi.

O tempo passou.

Cansado do tedioso tiro ao alvo que praticava disparando pedrouços contra latas vazias e pedaços de garrafa, Davi descobriu um dia que era muito mais divertido exercer contra os pássaros a habilidade com que Deus o tinha dotado, de modo que dali em diante a exercitou contra todos os que se punham ao seu alcance, em especial contra Pardais, Cotovias, Rouxinóis e Pintassilgos, cujos corpinhos sangrentos caíam suavemente sobre a grama, com o coração ainda agitado pelo susto e a violência da pedrada.

Davi corria alegre até eles e os enterrava cristãmente.

Quando os pais de Davi se aperceberam desse costume do seu bom filho se alarmaram muito, lhe perguntaram o que é que era aquilo, e denegriram a sua conduta com termos tão ásperos e convincentes que, com lágrimas nos olhos, ele reconheceu sua culpa, se arrependeu sincero, e durante muito tempo se aplicou em disparar apenas sobre os outros meninos.

Dedicado anos depois às Forças Armadas, na Segunda Guerra Mundial Davi foi promovido até general e condecorado com as cruzes mais altas por matar sozinho trinta e seis homens, e mais tarde degradado e fuzilado por deixar escapar com vida um Pombo mensageiro do inimigo.

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domingo

O AMOR PELOS LIVROS

TRISTE VIDA CORPORAL
Alberto da Costa e Silva



Se houvesse o eterno instante e a ave
ficasse em cada bater d'asas para sempre,
se cada som de flauta, sussurro de samambaia,
mover, sopro e sombra das menores cousas
não fossem a intuição da morte,
salsa que se parte... Os grilos devorados
não fossem, no riso da relva, a mesma certeza
de que é leve a nossa carne e triste a nossa vida
corporal, faríamos do sonho e do amor
não apenas esta renda serena de espera,
mas um sol sobre dunas e limpo mar, imóvel,
alto, completo, eterno,
e não o pranto humano.


Poema extraído do livro "As linhas da mão", Difel - Rio de Janeiro, 1978, pág. 74.

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sexta-feira

O AMOR PELOS LIVROS

FERNANDO PESSOA


Você pode ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,mas não se esqueça de que sua vida é a maior empresa do mundo. E você pode evitar que ela vá a falência. Há muitas pessoas que precisam, admiram e torcem por você. Gostaria que você sempre se lembrasse de que ser feliz não é ter um céu sem tempestade, caminhos sem acidentes, trabalhos sem fadigas, relacionamentos sem desilusões. Ser feliz é encontrar força no perdão, esperança nas batalhas, segurança no palco do medo, amor nos desencontros. Ser feliz não é apenas valorizar o sorriso, mas refletir sobre a tristeza. Não é apenas comemorar o sucesso, mas aprender lições nos fracassos. Não é apenas ter júbilo nos aplausos, mas encontrar alegria no anonimato. Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história. É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma. É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida. Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um “não”. É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta. Ser feliz é deixar viver a criança livre, alegre e simples que mora dentro de cada um de nós. É ter maturidade para falar “eu errei”. É ter ousadia para dizer “me perdoe”. É ter sensibilidade para expressar “eu preciso de você”. É ter capacidade de dizer “eu te amo”. É ter humildade da receptividade. Desejo que a vida se torne um canteiro de oportunidades para você ser feliz…
E, quando você errar o caminho, recomece.
Pois assim você descobrirá que ser feliz não é ter uma vida perfeita. Mas usar as lágrimas para irrigar a tolerância. Usar as perdas para refinar a paciência. Usar as falhas para lapidar o prazer. Usar os obstáculos para abrir as janelas da inteligência.
Jamais desista de si mesmo.
Jamais desista das pessoas que você ama.
Jamais desista de ser feliz, pois a vida é um espetáculo imperdível, ainda que se apresentem dezenas de fatores a demonstrarem o contrário.


terça-feira

O AMOR PELOS LIVROS

CAMINHA, CORNO
Charles Kiefer


"Contei e recontei a história tantas vezes que já nem sei mais o que é memória, o que é invenção. (A velha enfermeira, cega e meio caduca, com quem trabalhei durante décadas, sequer reconheceu minha voz. É isto, então, o que nos tornamos? Um saco desconjuntado de carnes moles, um conjunto de córneas vazias, uma boca gretada?) Lembro, sim, do médico que entrou no Hospital de Clínicas com um mendigo nos braços. Não fosse a ação rápida do doutor Nelson, o homem teria morrido. Não, dos detalhes não. Não sei de que cor eram os seus olhos, o tempo deixou as coisas meio nebulosas. Castanhos? Então, o senhor o conheceu? Ah, viu fotos, no hospital. Agora, minhas lembranças mais freqüentes são as de infância, e não desse período intermediário, os anos que passei metida num avental azul, correndo de um quarto ao outro do hospital, injetando morfina, trocando gaze, fechando, sobre olhos mortos, pálpebras espetadas. (Solitários são assim, quando encontram alguém disponível, desfiam o rosário todo. Mas a voz da velha ainda é agradável e melodiosa, e faz-me recordar as intermináveis noites de plantão, quando comecei a namorar a Júlia. No final da Residência, trocamos as incômodas macas de ambulatório pela cama sólida do casamento.) Escritores, como o senhor, além de não temer os clichês — que, afinal, o que seria da literatura, e da vida, sem os clichês? —, deviam passar os finais-de-semana em salas de emergência, para conhecer sangue, osso triturado, corte de faca, furo de bala. Flaubert, para melhor descrever os tormentos de Ema, tomou, ele próprio, arsênico. Espero que o seu interesse por mendigos passe, ao menos, pela vivência de uma ou duas noites ao relento, nos altos do inverno, sob a marquise de uma calçada. (Mais que escritor, sou médico. E como Pedro Páramo, personagem de Rulfo, só estou querendo saber quem foi meu pai. Não, não é só isso. A traição de Júlia, agora que eu supunha sua carne apaziguada, os e-mails que encontrei em seu computador, trouxeram até aqui.) Sim, o senhor tem razão, viver é recordar. Sem memória, não somos nada. O doutor Nelson exigiu que fizéssemos a higiene no paciente com o mesmo rigor de sempre. "Não é por ser mendigo que será tratado como cidadão de segunda classe", ele disse. "E quem pagará a conta?", aventurou-se a enfermeira-chefe. "Eu", disse o médico. Toda a implicância que eu nutria pelo jovem e orgulhoso doutor desfez-se naquele instante. Enfim, estávamos diante de um homem justo e sensível. (Não foi fácil localizar essa velha. Na Rua Felipe Camarão, onde residiu por décadas, disseram-me que talvez tivesse retornado a sua terra natal. Em Santa Cruz do Sul, encontrei parentes que me forneceram o endereço na capital, no Morro da Cruz. Meses de busca, e aqui estamos, um diante do outro. Na favela, todos a conhecem. Apesar da idade, presta auxílio aos necessitados. Enxerga pouco, mas tem boa mão para arrumar ossos. Na medida em que sua aposentadoria perdia poder aquisitivo, afastava-se do centro da cidade, e das livrarias. Acabou neste barraco imundo. Muitas vezes, no hospital, presenteei-a com livros. Era a única, na Zona 13, que aproveitava os raros instantes de folga para ler. Já então eu tinha pretensões literárias. A simples visão de um ser humano agarrado a um romance comovia-me. Prometi trazer-lhe algumas novidades, o último Saramago, as memórias de Garcia Márquez.) Não podes imaginar o fedor que exalava. Tinha o corpo coberto de escarras, os cabelos infestados de piolhos. Depois do banho, fiz-lhe a barba. Pelos dentes ainda sadios, percebi que não vivia há muito na rua. A recuperação foi rápida, era um velho forte. Dias depois, quando fui aplicar-lhe um sedativo, segurou a minha mão. Quero te contar um segredo. Não posso morrer com isso. Ali, naquela hora, imaginou o pior. Mas recuperou-se completamente, e retornou à rua. Nunca mais o vi. Sentei-me a seu lado e ouvi-o com atenção. Sempre fui delicada com os doentes. A gente nunca sabe o que o destino nos reserva, não é mesmo? (Muitas vezes eu o via, nas calçadas, arrastando as suas bugigangas, dormitando nos parques, acompanhado de um cachorro sarnento. Jamais me reaproximei. Salvei-o do infarto, era o suficiente. Fiz o meu trabalho, apenas isso. Respeitei a opção radical que fizera. "Enlouqueceu", dizia minha mãe, encerrando o assunto. Se aos lençóis quentes um homem prefere a escarcha da rua, é problema seu. Não seria eu, que dele tantas vezes ouvi, em seu inglês britânico, Live and let live, que o desrespeitaria. Dei-me apenas o direito de não comunicar a ninguém o grau de nossas relações. Quando foi necessário, salvei-o. Teria morrido na calçada, diante do hospital, sem a cirurgia. Depois, quando me formei, fui trabalhar no interior. Nunca mais o vi. Júlia era, então, apaixonada por mim.) Ele não devia ter fuçado nas coisas dela. Todo casal precisa manter espaços invioláveis. Se Carlos Bovary não tivesse aberto o compartimento secreto da escrivaninha de Ema, teria morrido feliz. Acho que para um homem é ainda mais difícil. Deles, até as mulheres exigem que sejam machos. Não somos as primeiras a desdenhar quando descobrimos que o vizinho é corno e não faz nada? De vez em quando, a esposa dormia na casa de uma amiga. No meio da noite, ele precisou de alguma coisa, era muito desorganizado. Resolveu telefonar. Até aquele instante não desconfiara de nada. O embaraço da outra, a explicação estapafúrdia — que Maurem saíra para comprar cigarros, mas a esposa não fumava —, fizeram soar o alarme. Tinha a noite inteira para procurar. Localizou as cartas. (Envergonhado, mantive em segredo meu parentesco com o mendigo. Quando essa mesma enfermeira, que agora mastiga a boca sem dentes, observou a coincidência de nomes no prontuário, desconversei.) Eu sabia, ele disse, agarrando-me a mão com firmeza. No instante em que apalpei o revólver na cintura, soube que não devia matá-los. Ouvi os gemidos de Maurem, atrás da porta, e compreendi que o que ela sentia era mais que paixão. Meses depois, quando anunciou que estava grávida, cheguei a sentir uma certa alegria, embora tivesse certeza de que o filho não era meu. O menino nasceu saudável, e de olho azul. Um professor de biologia, como eu, que ensinava a Teoria de Mendel a alunos sonolentos, não poderia enganar-se. Romeu comparou os olhos de Julieta a nozes-moscadas. Eu, depois, para fazê-la sofrer, comparava os olhos negros de minha mulher a suculentas ervilhas", disse-me o mendigo. Criei o menino. Sabia que um dia ele me salvaria. Não, ele não citou nenhum nome. Médico ou dentista, não tenho certeza. No início da gravidez, para protegê-la de assalto, de estupro, ele a levava até a porta do prédio. Enquanto ela se divertia, no consultório, ele fumava, na rua. Ao saber de seu estado, o amante quis que abortasse. Ela abriu a janela e apontou-lhe o marido, escorado numa árvore, no outro lado da rua. Ele vai nos matar, desesperou-se o homem. É manso, ela deve ter dito para acalmá-lo. O médico, ou dentista, nunca mais a recebeu. (Caminha, corno, essas ruas são ideais para um mergulho assim, ao fundo, ao que não se expressa ao melhor amigo, que não emerge nem mesmo do sono. Caminha sem pressa, há sempre uma janela interessante, um fundo de corredor inquieto, uma calçada de lajotas portuguesas, uma árvore mais velha, doente, de casca rugosa e remelenta para ser admirada. Caminha, corno, e esquece o calor infernal de março. Não podes negar, ele é bonito, assim, semi-nu nas fotos, bermuda gêmea da tua, presente de aniversário, para ele também, ora, então te pensaste exclusivo e único?, jovem, forte, tórax volumoso, braços que a abraçam, sonham-se, escrevem-se, tratam-se com um carinho que desconhecias nela, a tão dura companheira, econômica no afeto, no sexo, no sorriso, caminha e aquece o teu rancor, o teu ódio, a tua mágoa, toma coragem de encontrá-los, combinaram por escrito, há uma rua na cidade, um sofá estratégico, uma amiga alcoviteira, gemidos ainda não, gemidos só mais tarde. Caminha, corno, e avança por essas ruas com o frio do revólver na ilharga —) Sim, foi o que ele disse, que os gemidos dela, a intensidade deles, o tom, a freqüência, o espanto de descobri-la capaz de amar com fúria, fizeram-no mudar de idéia. Não, eu também não compreendo. A imagem dele, transtornado, decidido a matá-los, caminhando furiosamente por alamedas arborizadas, subindo os degraus de três em três, não teve paciência de esperar o elevador, nunca me saiu da cabeça, não, nunca me saiu da cabeça a imagem dele, escorado na porta e ouvindo os gemidos, e sorrindo."

Fonte: PROJETO RELEITURA