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Richard Clayderman - Matrimonio De Amor .mp3
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terça-feira

JORGE, UM BRASILEIRO AMADO

NEM A ROSA, NEM O CRAVO...
Jorge Amado


As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira, como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?
Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a cidade. Mas sobre todos esses quadros bóiam cadáveres de crianças que os nazis mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u'a nuvem inesperada num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento.
Mas sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal. Eles matam crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias, escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama. Como então ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros pardos, os monstros negros e os monstros verdes.
Mas eu sei todas as palavras de ódio e essas, sim, têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais trabalhadas. Hoje só 0 ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só 0 ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que nos impeça de ver qualquer espetáculo - desde o crepúsculo aos olhos da amada - sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca.
Jamais as tardes seriam doces e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo, sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam esmagar a poesia, o amor e a liberdade!

O texto acima foi publicado no jornal "Folha da Manhã", edição de 22/04/1945, e consta do livro "Figuras do Brasil: 80 autores em 80 anos de Folha", PubliFolha - São Paulo, 2001, pág. 79, organização de Arthur Nestrovski.

"AMAR-TE-IA A TI NEM SEI SE COM CARÍCIAS" - WILSON BUENO (Homenagem Póstuma)

À MANEIRA DE PRÓLOGO


Na recente demolição de aristocrática casa no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, os manuscritos deste Amar-te a ti nem sei se com carícias (note-se - um decassílabo perfeito...), protegido por uma capa de couro, gravada com as entrelaçadas iniciais L.P., que faz supor seja o monograma de Leocádio Prata, mas também o de Lavínia Prata ou mesmo, cruel coincidência, não se descarte, o de Licurgo Pontes, vieram dar às mãos deste vosso escriba, conhecido cultor de prosa antiga.
O manuscrito, - novo e intrigante dado -, pela caprichosa caligrafia e higiene geral do texto, leva a crer seja uma cópia do verdadeiro original. Contudo, em nenhum momento de suas exatas 200 folhas, ostenta a indicação de autoria. Depreende-se, pela leitura, pertença a Leocádio José de Azeredo Prata Filho, o L.P. das iniciais gravadas à guarda de couro, mas não vai aí nenhuma certeza e nem há como provar, sob qualquer hipótese, constitua mesmo produto de sua pena ou engenho. Quem, em sã consciência, poderia desprezar a possibilidade de que tudo não passe de mais um ardil do cínico Licurgo Pontes, fraudando à posteridade as confidências de um seu caríssimo desafeto? A epígrafe machadiana, no livro desde o começo, parece dizer mais do que simplesmente comunica.
Isto posto, não hesitei em oferecê-lo ao primeiro editor, não sem antes proceder a uma reescritura em diagonal do texto. Miúdas emendas, um que outro detalhe de somenos importância. Dono de estilo correto ainda que preciosista, um maneirismo de época, consideramos quase um dever ético dar a público a uma legítima voz do século XIX brasileiro. Para que lance, quem sabe, alguma luz sobre o desde já tumultuário início deste nosso terceiro milênio.
Agradeço à colaboração da família Souza Mello de Miranda, proprietária, em terceira ou quarta mão, do palacete recém desaparecido da bucólica rua Dona Mariana, a quem devemos, a rigor, a posse do manuscrito, e, por extensão, sua publicidade.Em vão buscou-se algum descendente de Azeredo Prata. Não o enconrando em nenhum logar, houvemos por bem tornar suas reflexões, mais que públicas, notórias; e, bem mais ainda, notáveis, pelo que esbanjam em gozo literário insubstituível.
W.B.

GENTES D'ANTANHO


Eglaê Medeiros e Vaz, aonde você? Aonde você, Aparícia, de mimosos olhos azuis contrastando a tez porcelana, alheia ao sol e aos desejos dos homens, um sol em si de rara cornucópia? E tu, bazófio Goes Alencastro Guimarães, produto feliz do casamento entre sciencia e arte, e de todos quantos existiram um dia, o nosso melhor e mais afoito habitante da "ilha excelsa da poesia", como o classificava o também saudoso Ascenso Motta, poeta decadentista? Aonde você, bazófio, e suas farfalhices hibernais? Cadê você, seus sonetos e suas botânicas? Mal o primeiro frio que nem frio era, só um frescor de entardecer e já os extravagantes capotes? Nesta cidade do Rio? Que de ocultações, meu nunca esquecido Goes? A alma não há quem a guarde consigo para sempre. Que de solução esconder-se atrás do capote ou da capa byroniana? Nada encobre o medo de viver e se o tinha à muita não seriam lá os panos que o preservariam do que na vida é exposição e vigília. Se nada mais fica, ficou-lhe a completa catalogação de uma espécie rara de flor - Eburnea fustigata brasiliense e, claro, a sonetaria luxuriante, os caprichosos quartetos e tercetos, os imprevistos fechos d'ouro, o spleen, os poemas feridos de amor e morte, oh vate oscilante sempre entre a nevrose e a doudice mais douda.
As recordações são bastantes e igual a saudade de Capistrano. Ah, Dr. Capistrano Souza, especialista em moléstias epidêmicas, pioneiro na especialidade cá neste burgo de São Sebastião... O saber scientifico não logrou livrá-lo de nossa crua impermanência. Há esta superstição esquiza que nos faz supor um médico ao largo das insídias da indesejada das gentes, como bem a classificou o admirável Machado. Nem sciencias nem filosofias, nada nos defende do certo fim.
O Dr. Capistrano, ao menos uma vez, revelou-nos, ardente, na roda vespertina do Café Leme, no Largo do Machado, que inda alcançava o Bromelius Citricus, a panacéia quase alquímica que promete aos humanos viver para além dos cem. Que um homem da rua, de baixo estrato, venha a crer em semelhante parvoíce, é o certo, mas que o Dr. Capistrano, scientista e homem versado em humanidades, o creia, causa espanto. Toleremos - quem não há de apostar em qualquer cousa, desde que esta mantenha em si a ilusão de nossa imortalidade? O Bromelius, nos explicava, cheio de dedos, entre um croissant e outro, pego com as finas mãos e levado à boca a movimentos medidos, explicava-nos a nós o Capistrano, há de livrar a Humanidade de tantas e tão várias enfermidades, justo as que mais matam, tardia ou precocemente, que não será impossível levar alguém adeante dos 120...
Pobre Capistrano que foi-se dessa depois de uma gripe fortíssima complicada em pneumonia, com menos de quarenta. Levou consigo os sonhos vãos do Bromelius Cítricus e outros sonhos que não convém expor aqui neste caderno de notas, reflexões de um velhusco que já se entende com a Morte feito ela fosse uma lamentosa vizinha, e que se avém com a escrita movido quiçá por outra utopia, talvez mais vã e mais debalde - a utopia de aprisionar não o futuro, mas o passado que já se nos fugiu como um doudo foge nos dramas musicados do Varella, pontuais pelas sextas-feiras nos teatros da cidade.
E você, amigo velho, compadre depois, antes colega das noites pândegas do Largo de São Francisco, você, meu bom Vaz? Aonde você, Américo Coutinho Vaz que tão cedo nos trocou pelas leis que regem o silêncio dos campos santos? Tinhas um brilhante futuro no Cível mas quis o destino poupá-lo das leis cá dos homens para em troca oferecer-vos as jurisprudências do céu.
Ah, meu bom Américo Vaz - vale a pena ser aqui, nesta noite do Majestic, tão e só o sobrevivente? Que de solidão mais látego! Daqui desta secretária postada à janela do 302 deste hotel debruçado sobre o morro de Santa Tereza, ao longe vislumbro a cidade esparramando-se, o casario do centro, e um pedaço do porto. Vez em vez um vento insistente mexe-me os papéis sobre a mesa e se apuro ouvidos capaz ouça os roncos infames do Villaça que cedo dorme e cedo acorda para tornar a dormir, larga parte da manhã, nas chaises longues da varanda do hotel. Diz que sonha com os mouros, o professor Villaça; só não nos diz que mouros são estes os de suas viagens oníricas. Se convertidos à fé do Cristo ou ainda maometanos... Os mouros do Villaça, pensando melhor, são só a velhice...
Ficaria horas desta noite do exangue mil novecentos e treze a nomear e a perguntar por todos os que já partiram, nenhum deles, creiam, capaz de se nos apertar num abraço de despedida para dizer que iam. Foram-se; só isso - foram-se e nos deixaram, além do estupor renovado de que morremos, a saudade que muita vez não sendo melancolia, é pura aflição e o desespero medido de minhas noites de agora. E cá não refiro os íntimos, os muito íntimos, que a partida destes são mais que saudades, são o aguilhão na carne de alguém que mesmo sem haver tomado o Bromelius Citricus sobre a soturna Terra insiste. Vá lá também as dores do sobrevivente, e a desonra de estar vivo, assim aqui inteiramente confessadas...

(Fragmentos do romance Amar-te-ia a ti nem sei se com carícias - Trechos da obra: Prólogo e Capítulo inicial)

Fonte: Folha de S. Paulo (Ilustrada)

O SUOR E A LÁGRIMA - CARLOS HEITOR CONY

O SUOR E A LÁGRIMA
Carlos Heitor Cony

 

Fazia calor no Rio, 40 graus e qualquer coisa, quase 41. No dia seguinte, os jornais diriam que fora o mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei ao Santos Dumont, o vôo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio, são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e em poucos lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o trono de um rei desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo e estava com calor — o que me pareceu óbvio. Elogiou meus sapatos, cromo italiano, fabricante ilustre, os Rosseti. Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte porque quando posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o próprio suor, que era abundante.
Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a todo instante o usava para enxugar-se — caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano.
E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho à custa do suor alheio. Nunca tive sapatos tão brilhantes, tão dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar nos restos dos meus dias.
Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima.

O texto acima foi publicado no jornal “Folha de São Paulo”, edição de 19/02/2001, e faz parte do livro “Figuras do Brasil – 80 autores em 80 anos de Folha”, Publifolhas – São Paulo, 2001, pág. 319, organização de Arthur Nestrovski.