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Richard Clayderman - Matrimonio De Amor .mp3
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terça-feira

AMOR PELOS LIVROS

O VELHO DE ALCÂNTARA-MAR
Miguel Souza Tavares

Eu estava a almoçar sozinho num restaurante, como tanto gosto de fazer, a meio do dia de trabalho. Detesto «almoços de trabalho», almoços de circunstância ou almoços de coisa alguma. Detesto almoçar os outros, resumindo. Prefiro almoçar a comida, acompanhada de uma revista ou de um jornal.
O restaurante era pouco mais que uma tasquinha de Alcântara, que tem a vantagem de ter uma comida caseira e sem pretensões e de não ser frequentado pela classe emergente dos almoços, com os telemóveis em cima da mesa, ao alcance de uma urgência, porque gente importante e ocupada é assim. Este restaurante, pelo contrário, é frequentado por uns clientes discretos, habituais e silenciosos, que vêm comer polvo cozido com todos e parecem cobertos por uma fina poeira de tristeza que os toma, de certa forma, íntimos. Íntimos, apesar do nosso mútuo silêncio, cúmplices na solidão das mesas, como marinheiros naufragados, cada um em sua ilha.
Gosto destes personagens lisboetas da hora de almoço, que comem sozinhos resmungando entre dentes, que compram lotaria, lêem os anúncios do Correio da Manhã e tratam as empregadas de mesa por «Menina isto» e «Menina aquilo». Imagino em cada um deles um Fernando Pessoa, órfão de obra e deserdado de sentimentos. São solitários e tristes, porém não são trôpegos, mas dignos, de costas direitas e cara fechada olhando em frente, quando se levantam da mesa discretamente em direcção à porta, como se deslizassem em direcção à vida.
Um dia entrou um homem destes, que eu já tinha visto anteriormente. Era um cliente de bairro, um «vizinho» do restaurante — ocasionalmente almoça, mas, regra geral, limita-se a chegar sobre o tarde, senta-se numa mesa em frente à porta com um jornal dobrado à frente, encomenda uma bica e fica a olhar para a rua, atento ao passar do tempo. Vê-se que é reformado porque não tem horário fixo nem pressa alguma. Não será viúvo, mas apenas gasto, viverá num 3° esquerdo, indiferente às lamúrias da «patroa», sentado num sofá de costas para a janela para receber a luz para as palavras cruzadas do jornal.
Mas nesse dia o homem entrou no restaurante com um sorriso luminoso na cara. Parecia ter rejuvenescido dez anos, as costas estavam mais direitas, a roupa mais alisada, o cabelo penteado deveria cheirar a água de colónia Ach. Brito. Só percebi a razão da transformação quando o vi virar-se para trás na porta da entrada e estender a mão a um miúdo que o seguia: era o neto. Passeou o miúdo pelo restaurante como se apresentasse uma namorada rainha de beleza. De mão dada com ele, foi até ao balcão e sentou-o lá em cima para que todos os empregados o vissem, sorriu à volta e fez um gesto largo para o miúdo, indicando o mostruário onde repousavam a pescada para cozer ou fritar, o leitão frio ou quente da Mealhada e as costeletas de vitela para grelhar, e disse: «Então, escolhe lá o que queres almoçar».
Pediu mesa com toalha de pano, encostada à parede, de onde todos o pudessem ver e ele pudesse ver todos. Levou o neto ao colo até à mesa, sentou-o na cadeira, atou-lhe o guardanapo de pano ao pescoço e então o miúdo agarrou-lhe a cara de repente, puxou-o para si e deu-lhe um beijo. O velho sentou-se à frente dele e olhou em frente. Encontrou o meu olhar, que devorava a cena. Por um brevíssimo instante pareceu-me que ele tinha ficado suspenso da minha reacção: queria ser visto, mas tinha medo. Inclinei a cabeça e cumprimentei-o em silêncio — foi a primeira vez que o cumprimentei: o seu olhar era líquido de ternura e firme de orgulho. Quando for velho, quero ser exactamente assim.

(Foi mantida a grafia original)


Texto extraído do livro “Não te deixarei morrer, David Crockett”, Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 2005, pág. 99.

AMOR PELOS LIVROS

JOSÉ MINDLIN UM APAIXONADO PELOS LIVROS


José Mindlin foi o maior bibliógrafo brasileiro e – talvez – o maior do mundo. Filho de país russos, imigrados para o Brasil no começo do século passado, advogado, fundador da Metal Leve ( Fabricante de autopeças), repórter de “O Estado de S.Paulo” e ex-secretário de Cultura do governo Paulo Egydio Martins, Mindlin define as etapas do processo em que se estabelece a compulsão patológica, o “verdadeiro vício”, pelos livros. 
Primeiro se começa com as edições comuns. Depois vem o interesse pelo livro bonito, com ilustrações e bem diagramados. A próxima é a busca das primeiras edições de um determinado título. Passa-se, então, a procurar exemplares autografados. A última etapa é a consciência da raridade. E aí você está definitivamente perdido.
O intelectual admite que manter uma biblioteca em casa é algo que dá prazer, mas argumenta que “ter o livro não deveria ser a condição para se ler”. Para ele, é obrigação do governo — com a colaboração dos empresários — a formação de bibliotecas, principalmente em escolas públicas de ensino fundamental e médio. Com isso, estaria-se estimulando o hábito principalmente entre as crianças. “O interesse cada vez maior pela leitura também formará um grupo maior de patrocinadores. Quem gosta de ler tem o prazer de que isso seja transmitido”, ensina ele, que é considerado um dos mais importantes mecenas brasileiro do livro. “Eu tenho procurado sempre inocular o vírus da leitura e do gosto pelos livros para um maior número de pessoas.”
E falando nisso, ele comentou a afirmação de Rubem Alves de que a leitura não deve ser mero hábito, mas prazer:
Hábito ou gosto, o fato é que a leitura deve entrar na nossa vida. Quando eu ia levar as crianças para a escola, tinha que chegar às 7h10. Encostava o carro debaixo de uma árvore e lia até 8h45. Uma hora e meia de leitura diária. Naquele tempo não havia assaltos, ou telefone celular – que até hoje não uso. Em geral, gosto de ler um livro até o fim. Mas, se não me dá prazer, eu deixo. O livro não é só uma fonte de conhecimento. Você tem que gostar do que está lendo. O livro é, principalmente, uma fonte de prazer. E nisso Rubem Alves está certo.