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Richard Clayderman - Matrimonio De Amor .mp3
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sexta-feira

EUGENIO MONTALE FOI AGRACIADO COM O PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA EM 1975

SEM TÍTULO
Eugenio Montale


Um dia não muito longe
assistiremos à colisão
dos planetas e o céu diamantado
acabará submerso em escombros.
Então colheremos flores rutilantes
e estrelas de néon.
Olha, eis o sinal, um fogo
acende-se no céu, chocam-se
Júpiter e Órion e no terrível
estampido onde acabou o homem?
Certo que basta um sopro neste mundo
em que vivemos para que ele acabe.
Ficará talvez um grito, o da
terra que não quer perecer.






O poema acima foi publicado na revista "Palavra", Editora da Palavra - Belo Horizonte (MG), ano 1, nº 7, Outubro/1999, tradução de Ivo Barroso.

"A VONTADE E A FORTUNA" NOVO ROMANCE DO ESCRITOR CARLOS FUENTES

CASTOR E PÓLUX


Permitam-me apresentar-me. Ou melhor: apresentar meu corpo, violentamente separado (isto já o sabem) de minha cabeça. Falo de meu corpo porque o perdi e não terei outra oportunidade de apresentá-lo a vossas mercês, ou a mim mesmo. Indico assim, de uma vez, que a narração que se segue é ditada por minha cabeça e apenas por minha cabeça, uma vez que meu corpo, separado dela, já não é mais que uma lembrança: o que aqui for capaz de consignar e deixar nas mãos do advertido leitor.

Bem advertido: o corpo é pelo menos metade do que somos. No entanto, o deixamos escondido num closet verbal. Por pudor, não nos referimos a suas inapreciáveis e indispensáveis funções. Dispensem-me vocês: falarei com todo o detalhe de meu corpo. Porque, se não o fizer, logo meu corpo não será senão cadáver insepulto, ave de açougue, anônimo lombo. E, se não quiserem saber de minhas intimidades corporais, pulem este capítulo e iniciem a leitura, muito formalmente, no seguinte.
Sou um homem de vinte e sete anos de idade e um metro e setenta e oito de altura. Toda manhã me olho nu no espelho de meu banheiro e acaricio as faces antecipando a cotidiana cerimônia: fazer a barba e o bigode, provocar uma reação forte com a água-de-colônia Jean-Marie Farina no rosto, resignar-me a pentear um cabelo preto, grosso e revolto. Fechar os olhos. Negar ao rosto e á cabeça preto, grosso e revolto. Fechar os olhos. Negar ao rosto e á cabeça o papel principal que minha morte se encarregará de dar-lhes. Concentrar-me, em vez disso, em meu corpo. O tronco que vai separar-se da cabeça. O corpo que me ocupa do pescoço às extremidades, revestido de uma pele cor de canela pálida e externado em unhas que continuam crescendo horas e dias após a morte, como se quisessem arranhar a tampa do caixão e gritar aqui estou eu, continuo vivo, você se enganaram ao enterrar-me.
Esta é uma consideração puramente metafísica, como o é o terror em suas modalidades passageiras e permanentes. Devo concentrar-me em minha pele aqui e agora: devo resgatar meu físico, em toda a sua integridade, antes que seja tarde demais. Este é o órgão do tato que cobre todo o meu corpo e se prolonga dentro dele com travessuras anais módicas e permissíveis se comparadas com as brincadeiras maiores do gênero feminino, com seu incessante entrar e sair de corpos alheios (a verga do macho notoriamente e o corpo do menino sagradamente, enquanto de meu envoltório masculino só saem o sêmen e a urina pela frente, e por trás, tal como chez la femme, a merda e, em casos de prisão de ventre, a hóstia profunda do supositório). Cantarolo agora: “Caga o boi, caga a vaca e até a menina mais guapa solta sua bola de caca.” Amplas, generosas entradas e saídas da mulher. Estreitas, avaras as do homem: a uretra, o ânus, a urina, a merda. Claros e brutais os nomes. Obscuros e risíveis as alcunhas: tubos de Bellini, asa de Henle, cápsula de Bowmann, glomérulo de Malpigio. Perigos: anuria e uremia. Sem urina. Urina no sangue. Eu os evitei. Tudo, ao fim e ao cabo, é evitável na vida, menos a morte.
Suei. em vida suou todo o meu corpo, com exceção das pálpebras e da borda dos lábios. Suei limpo, salgado, sem mau cheiro, embora suar e urinar fossem produtos humanos, mas distinguíveis pela qualidade distinta do cheiro. Nunca precisei de desodorantes. Tive nobres e limpas axilas. Minha urina, sim, cheirou mal, a tugúrio esquecido e a caverna sem luz. Meu cocô variou com as circunstâncias, sobretudo dependendo da dieta. A comida mexicana nos aproxima perigosamente da diarréia, a norte-americana da cólica, a britânica da prisão de ventre. Apenas a cozinha mediterrânea assegura um equilíbrio sadio entre o que entra pela boca e o que sai pelo cu, como se o azeite de oliva e o vinagre de Módena, o produto das horas de Meio-dia, os pêssegos e os figos, os melões e os pimentões, soubessem antecipadamente que o gosto de comer deve ser compensado como o gosto de cagar, muito de acordo com as prosas de Quevedo: “Mais te amo que a uma boa vontade de cagar.”
Em todo o caso — em meu caso —, a merda é quase sempre dura e amarronzada, ás vezes enroscada com estética como as de barro que se vendem nos mercados, às vezes diluída e atormentada pelos alimentos picantes nacionais: merda minha. E raras vezes (sobretudo ao viajar) reticente e mal-encarada.
Sei que com estas diversões, meus caros sobreviventes, estou adiando o mais importante. Chegar à minha cabeça. Contar-lhe como era meu rosto após dar a entender que as nádegas são, como é bem sabido, o segundo rosto do homem. Ou será o primeiro? Já indiquei, ao pentear-me, que tenho uma boa mata indígena de cabelo escuro e mais enraizado que um agave. Falta-me indicar que meus olhos escuros afundem nas órbitas de um esqueleto facial quase transparente se não fosse pelo disfarce moreno da pele. (A pele morena esconde melhor os sentimentos que a pele branca. Por isso quando se manifesta é mais brutal, ainda que menos hipócrita.) Resumo: tenho sobrancelhas invisíveis, boca agradável, fina, quase sempre, e sem razão alguma, salvo a da cortesia, sorridente. Orelhas nem grandes nem pequenas, apenas adequadas a meu rosto extremamente magro, a pele colada ao osso, as raízes do cabelo brotando como matos noturnos que crescem sem luz.
E tenho nariz. Não um nariz qualquer, mas uma probóscide grande, por sorte fina, mas longa e fina, como um periscópio da alma que se adianta á vista para explorar a paisagem e saber se vale a pena desembarcar ou permanecer retraído, debaixo do mar da existência.
O grande sargaço da morte antecipada.
O mar que sobe em breves ondas, obrigando-me a engoli-lo antes que chegue aos orifícios de meu grande nariz, saliente entre a praia e a maré do amanhecer.
Sou corpo. Serei alma.

"A vontade e a fortuna" (Rocco), novo romance do escritor mexicano Carlos Fuentes.

"CORAÇÕES VAGABUNDOS" - FERNANDO BONASSI

CORAÇÕES VAGABUNDOS
Fernando Bonassi



O carro dobrou na Cesário Mota Jr., e Cibele logo percebeu que era o homem esquisito. Já passava de seis meses agora. Toda semana. Toda sexta-feira à noite. Nove horas em ponto o sujeito aparecia. Banho tomado, roupa passada. Ele vinha escorregando com o carro pro lado dela. Parava, mas deixava o motor ligado. Destravava a porta. Às vezes dizia alguma coisa.
— Boa noite.
— Boa.
Às vezes, nem isso... Mas sempre aquele cheiro de água de colônia. Enjoativo. Cibele sentia falta de ar. Procurava pelo botão do vidro. Não achava. Não tinha coragem de perguntar onde ficava. Contava até dez. Passava.
— Aposto que eu sei onde a gente vai...
O homem fez que sim com a cabeça. Ele a levava pra comer frango à passarinho com caipirinha em Pinheiros. Bebiam e comiam em silêncio aquelas irresistíveis desgraças cheias de gordura até perderem o juízo. Ela não conseguia se controlar. Depois pediam sobremesa. Ela simplesmente não conseguia se controlar! E ainda tomavam cafezinho:
— Sem açúcar, por favor...
Ele pagava e a deixava no mesmo lugar. Pagava o preço mais caro. Perguntou na primeira vez:
— Quanto é pra fazer tudo?
Ela caprichou. Ele tirou o dinheiro do bolso. Não tinha muito mais do que ela pedira, mas fez questão de acertar antes. De lá pra cá era sempre igual. Uma vez perguntou:
— Teve aumento?
Cibele não teve coragem. Pediu o de sempre.
Portanto ele podia fazer tudo o que quisesse, mas sempre a devolvia na mesma esquina. "Sem um arranhão!", como costumava dizer às amigas. Toda semana. Toda sexta-feira, entre 11 e 11 e meia estava de volta ao ponto. Menos mal, pensava a mulher, que ainda contava com todo o movimento da madrugada pra aproveitar. Aproveitava mesmo, que Cibele não fazia questão de prestar e tinha muitos planos; mas aquele homem... Não sabia se tinha vergonha... Ou pena. O coração dela ficava espremido. Ruminava as razões dele. Passava a semana com esse troço por dentro. Não chegava a lugar nenhum.
Até esse dia tinha ficado quieta, mas, no restaurante, quando ele perguntou o que ela queria, Cibele pôs a língua pra fora e disse:
— Você.
O garçom se fez de morto. Era um bom garçom. Ficou brincando de estátua com a caneta e o bloquinho. Passou um bom tempo assim, porque o homem deu uma risada comprida e só então virou pra pedir:
— Duas caipirinhas de pinga e um frango à passarinho.
O garçom se afastou e a mulher continuou provocando:
— Você gosta de beber, né?
— É bom, fica tudo mais fácil...
— Devia comer de vez em quando.
Dessa vez o homem não riu.
— Você é casado?
— Hum-hum.
— Mentira. Se fosse casado a tua mulher ia desconfiar da rotina.
— Não é uma questão de confiança.
— Ela é doente?
O homem voltou a rir.
— Você é doente?
— Não.
— Gay?
Chegou o pedido. Cibele ficou desacorçoada. Costumava dizer que se um dia fosse executada, frango à passarinho seria sua última refeição. Tentou escolher um pedaço bem sequinho. Difícil. Ficou mordiscando. Depois pegou mais. E foi pegando, querendo morrer. Seus lábios brilhavam quando perguntou:
— Eu não sou boa pra você?
O homem teve a coragem de fazer Cibele esperar que pegasse um cigarro do maço, tirasse caixa de fósforos do bolso da calça, um palito de dentro dela, acendesse esse maldito cigarro e só então se dignasse a responder:
— Você é a melhor coisa da minha semana.
— "Coisa"?!
O homem bufou diante da mulher, levantou a palma da mão pro garçom e fez que escrevia nela com um dedo. Cibele ficou pescando os restinhos de alho da bandeja.
— Você me engorda.
Cibele fechou a cara. De cara fechada esperou que o homem pagasse a conta e a levasse de volta à esquina de sempre. Nessa noite Cibele não sentiu o enjôo da água de colônia quando ele se debruçou nela pra destravar a porta. Desceu e ficou de costas. O homem baixou o vidro. "Aqueles botões...”
— Até sexta-feira...
Cibele pensou em ofender, mas quando virou, aquele homem esquisito estava bem ali... Ela sem saber se era vergonha ou pena... O coração espremido...
— Tá bom, te espero aqui.

Texto extraído da coluna que o autor mantém no jornal "Folha de S.Paulo".

"DESAFORISMOS" Franklin Jorge

DESAFORISMOS
"Tudo o que vemos é outra coisa."
Fernando Pessoa - Primeiro Fausto
Franklin Jorge


Ao embaixador Fernando Abbott Galvão.


Ascese: A rotina é uma forma de ascese.
Alegria: A alegria, de essência vulgar, é o consolo dos pobres.
Arquivo: V. Corpo.
Artista: Um artista alegre é tão inconcebível quanto um boi voador.
Bagdad: V. Sertão.
Balé: O balé é por demais abstrato.
Café: Ópio dos intelectuais. Madame de Sévigné repudiou o café como um modismo de cortesãos. Não foi feliz quando lhe vaticinou um sucesso efêmero.
Carnaval: O carnaval é a ópera socializada.
Casamento: Comodidade que acaba incomodando. Suprema punição do indivíduo que recorre ao hábito da família.
Clube: A feira, popular e multitudinária, é o clube do homem sertanejo.
Corpo: Arquivo de sensações.
Criar: Criar, para burlar a morte.
Dândi: Homem que não gosta de tirar a roupa.
Édipo (Complexo de): O homem é de tal forma edipiano que às vezes casa-se apenas para ter uma sogra.
Envelhecer: Embora o corpo não constitua obstáculo ao romance, sinto o grave desgosto de envelhecer.
Excesso: O excesso de limão estraga a ostra.
Excrescência: Os seios, numa mulher, são excrescência. Como a barba, nos homens.
Escrever: Escrever é transgredir os códigos. Escrever paralisa os hipócritas. Escrever é a vingança do mais fraco. Escrever equivale a um lento suicídio. É o ato mais próximo do suicídio. Quero disciplinar-me a escrever com uma raiva fria.
Família: uma sociedade de estranhos que se cumprimentam e às vezes se agridem. A vida em família é uma maneira aceitável de autopunição.
Filhos: Os filhos pagam os prazeres dos pais, mas rolam a dívida para os netos e bisnetos etc.
Humor: A ausência de humor embrutece o homem.
Jornalismo: Profissão de homens sem profissão. A sociedade espera mais do que recebe do jornalismo.
Linguagem: A linguagem sertaneja é por demais refinada. Muita vez ouvi dizer "miolo de quartinha", significando a conversa fútil, inconsistente, jogada fora, a prosa vadia.
Mediocridade: A mediocridade é contaminante. Sempre vence. A mediocridade é o partido dos que tiram vantagem de tudo na vida.
Metáfora: A mais bela metáfora é a do homem que escala a montanha.
Morrer: Antes morrer de Aids do que de tédio.
Morte: A morte é ecológica.
Motel: Sinônimo de supermercado.
Mulheres: As mulheres seriam os melhores amigos do homem, se soubessem distinguir sexo de amizade.
Museu: O museu do futuro não terá limites.
Música: Quando menino eu gostava de cantar e tinha uma bela voz. Depois, meu ouvido tomou-se impaciente para a música. O pior dos ruídos, segundo Napoleão. Dante não faz referência à música no seu poema.
Músicos: Convivi em minha infância com violeiros, músicos e poetas ambulantes, populares no sertão nordestino. Aprecio alguns músicos que não sei bem se o são. Eric Satie, Jean-Michel Jarre, Ravel e Saint-Sãens.
Narcisismo: A idéia de procriar é o cúmulo do narcisismo.
Nietzsche: O mundo seria pobre sem os ditirambos de Nietzsche, assassino de Deus.
Ópera: A ópera é um carnaval estilizado. É um espetáculo que cansa os sentidos. Resultaria numa tortura refinada a imposição de uma temporada que durasse infinitamente.
Orgasmo: O orgasmo não vale o esforço de tirar a roupa. Os homens confundem orgasmo com poder.
Piscina: A piscina é o símbolo infeccioso de uma época vulgar e promíscua. Piscina é coisa de romano ou arrivista.
Plástico: O plástico é uma matéria-prima repulsiva, símbolo descartável da sociedade de consumo. Nos séculos 17 e 18, civilizadíssimos, não havia plástico.
Rabo: Sinônimo de cu. Rogaciano Leite, escrevendo sobre os efeitos da seca no Nordeste, disse que Deus não viu quando o diabo amarrou uma tocha flamífera no rabo e saiu a correr incendiando o sertão.
Releitura: A cada releitura de Ascendino Leite, pensador de um infinito jornal literário, tenho a noção de que aprendi alguma coisa.
Remorso: O remorso é uma metáfora do inferno. É um inferno para uso privado.
Ricos: Mesmo entre os ricos há os que trabalham e os que se divertem.
Ridículo: Somente o ridículo tem vida eterna. Somente o ridículo sobrevive ao homem. Somente o ridículo é eficaz.
Rir: Os homens vulgares não sabem rir.
Ruído: A palavra ruído me cativa com a sua sonoridade sincopada.
Sauna: A sauna é o que há de mais próximo de um templo. Como nos santuários de antigos deuses do paganismo, aqui a prostituição é ofício sagrado. É uma maravilhosa invenção que reúne em um mesmo âmbito duas coisas sagradas: religião e prostituição. Nunca entrei numa sauna sem um certo temor reverente.
Sertão: O sertão é um mundo na fronteira do Oriente. Para o sertanejo, toda cidade é um pouco Bagdá. O sertão é uma utopia de João Guimarães Rosa.
Sexo: De origem vulgar. O sexo é suspeito porque implica a cumplicidade de um parceiro. O sexo competitivo é tão insípido quanto um rodízio de churrascaria. Uma herança das cavernas. Sinônimo de tédio.
Sobressalto: O luxo de criar, enfim, um sobressalto.
Solidão: Conquista difícil, prêmio de poucos.
Sonhos: Os sonhos são alquímicos.
Tragédia: Quase todo noivado antecipa uma tragédia.
Utopia: A utopia é um nobre refúgio.
Vaqueiro: Porque tenho a alma de vaqueiro, sigo adorando os sons orientais.
Vulgaridade: A vulgaridade é superlativa.


Franklin Jorge
"Ficções Fricções Africções" - Mares do Sul, 1999, pg. 53.

"GERAÇÃO 90: OS TRANSGRESSORES DE 2003" - IVANA ARRUDA LEITE

RONDÓ
Ivana Arruda Leite


Luísa julgava impossível terminar seu caso com Mário. Um dia, tenra como um pintinho saído da casca, chamou Mário à sua casa e pediu que não a procurasse mais. Ele relutou, mas foi. Ela nem chorou. Abriu a bolsa, apanhou a agenda e anotou o único compromisso para o próximo fim de semana: ser feliz.
Luísa julgava impossível terminar seu caso com Mário. Sofria da síndrome do fracasso prévio, já tentara mil vezes e nunca havia conseguido. Um dia, tenra como um pintinho saído da casca, chamou Mário à sua casa e pediu que não a procurasse mais. Ele relutou, mas foi. Ela nem chorou. Abriu a bolsa, apanhou a agenda e anotou o único compromisso para o próximo fim de semana: ser feliz.
Luísa julgava impossível terminar seu caso com Mário. Sofria da síndrome do fracasso prévio, já tentara mil vezes e nunca havia conseguido. Aquele amor mais parecia um câncer ou vício que não se cura. Ela esperava que um milagre acontecesse. Um dia, tenra como um pintinho saído da casca, chamou Mário à sua casa e pediu que não a procurasse mais. Antes, porém, sentou no colo e falou que talvez ainda valesse a pena tentar. Mário não disse palavra. Ela fez pé firme e pediu que ele fosse embora de uma vez. Ele relutou, mas foi. Ela nem chorou. Fez um café, sentou-se na sala e acendeu um cigarro. Abriu a bolsa, apanhou a agenda e anotou o único compromisso para o próximo fim de semana: ser feliz.
Luísa julgava impossível terminar seu caso com Mário. Sofria da síndrome do fracasso prévio. Já tentara mil vezes e nunca havia conseguido. Estavam juntos há mais de oito anos, mas Mário só prometia casamento quando bebia além da conta. Aquele amor mais parecia um câncer ou vício que não se cura. Ela esperava que um milagre acontecesse. Um dia, tenra como um pintinho saído da casca, chamou Mário à sua casa e pediu que não a procurasse mais. Antes, porém, sentou no colo e falou que talvez ainda valesse a pena tentar. Mário não disse palavra. Nisso tocou o telefone. Era a mulher de Mário dizendo que hoje era o último dia para pagar o Credicard. Mário pediu dinheiro emprestado a Luísa e foi entregar à mulher que estava esperando lá embaixo. Com o talão de cheques aberto sobre a mesa, Luísa disse olhando fundo nos seus olhos: você não tem dó de mim? Mais do que você pensa, ele respondeu. Tava na cara que aquilo era frase feita, ele nunca quis mudar a situação. Ela fez pé firme e pediu que ele fosse embora de uma vez. Ele relutou. mas foi. Ela nem chorou. E eu ainda lhe paguei o Credicard. Fez café, sentou-se na sala e acendeu um cigarro. Abriu a bolsa, apanhou a agenda e anotou o único compromisso para o próximo fim de semana: ser feliz.
Luísa julgava impossível terminar seu caso com Mário. Sofria da síndrome do fracasso prévio, já tentara mil vezes e nunca havia conseguido. Estavam juntos há mais de oito anos, mas Mário só prometia casamento quando bebia além da conta. No começo foi um romance muito apaixonado. Acreditavam que haviam nascido um para o outro. Hoje, aquele amor mais parecia um câncer ou vício que não se cura. Ela esperava que um milagre acontecesse. Um dia, tenra como um pintinho saído da casca, chamou Mário à sua casa e pediu que não a procurasse mais. Antes, porém, sentou no colo e falou que talvez ainda valesse a pena tentar. Mário não disse palavra. Nisso tocou o telefone. Era a mulher de Mário dizendo que hoje era o último dia para pagar o Credicard. Mário pediu dinheiro emprestado a Luísa e foi entregar à mulher que estava esperando lá embaixo. Com o talão de cheques aberto sobre a mesa, Luísa disse olhando fundo nos seus olhos: você não tem dó de mim? Mais do que você pensa, ele respondeu. Tava na cara que aquilo era frase feita, ele nunca quis mudar a situação. Ela fez pé firme e pediu que ele fosse embora de uma vez. Não sei se se fez de surdo ou de bobo, mas sugeriu que fossem comprar cerveja pra lavar a serpentina. Luísa disse que não estava a fim de cerveja porcaria nenhuma e que não queria prolongar aquele inferno por mais nenhum minuto. Ele relutou, mas foi. Ela nem chorou. E eu ainda lhe paguei o Credicard. Fez café, sentou-se na sala e acendeu um cigarro. Abriu a bolsa, apanhou a agenda e anotou o único compromisso para o próximo fim de semana: ser feliz.
Meu nome é Luísa, tenho trinta e sete anos e sempre julguei impossível terminar meu caso com Mário. Passei a sofrer a síndrome do fracasso prévio, já tentara mil vezes e nunca havia conseguido. Estávamos juntos há mais de oito anos, mas Mário só prometia casamento quando bebia além da conta. Sóbrio, tinha sempre um punhado de razões: o filho, os cachorros, a casa, a mulher, o papagaio, a mãe doente, a grana. No começo foi um romance muito apaixonado. Acreditávamos que havíamos nascido um para o outro. Hoje, aquele amor mais parecia um câncer ou vício que não se cura. Sempre esperei que um milagre acontecesse. Um dia, tenra como um pintinho saído da casca, chamei Mário à minha casa e pedi que não me procurasse mais. Antes, porém, sentei no colo e falei que talvez ainda valesse a pena tentar. Mário não disse palavra. Depois riu: você já me falou isto mil vezes. Nisso tocou o telefone. Era a mulher dele dizendo que hoje era o último dia para pagar o Credicard. Pois ele teve a cara de pau de me pedir dinheiro emprestado e levar à mulher que estava esperando lá embaixo. Quando perguntei: e nós? E a nossa situação? Ele me disse: hoje é o último dia pra pagar o Credicard e você quer que eu pense na nossa situação? Ao subir, me encontrou feito estátua na sala de jantar. Olhei fundo nos seus olhos e perguntei: você não tem dó de mim? Mais do que você pensa, ele respondeu. Tava na cara que aquilo era frase feita, Mário nunca quis mudar a situação. Fiz pé firme e pedi que ele fosse embora de uma vez. Não sei se se fez de surdo ou de bobo, mas sugeriu que fôssemos comprar cerveja pra lavar a serpentina. Disse-lhe que não estava a fim de cerveja porcaria nenhuma e que não queria prolongar aquele inferno por mais nenhum minuto. Ele relutou, mas foi. Eu nem chorei. E eu ainda lhe paguei o Credicard. Depois que ele saiu, fiz café, sentei-me na sala e acendi um cigarro. Nunca mais fui feliz.

Texto do livro “Geração 90: os transgressores de 2003”; “Ficções fraternas” e “Contos de escritoras brasileiras”, Editora Martins Fontes – São Paulo, 2003, pág. 145.

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