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Richard Clayderman - Matrimonio De Amor .mp3
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sexta-feira

"A VONTADE E A FORTUNA" NOVO ROMANCE DO ESCRITOR CARLOS FUENTES

CASTOR E PÓLUX


Permitam-me apresentar-me. Ou melhor: apresentar meu corpo, violentamente separado (isto já o sabem) de minha cabeça. Falo de meu corpo porque o perdi e não terei outra oportunidade de apresentá-lo a vossas mercês, ou a mim mesmo. Indico assim, de uma vez, que a narração que se segue é ditada por minha cabeça e apenas por minha cabeça, uma vez que meu corpo, separado dela, já não é mais que uma lembrança: o que aqui for capaz de consignar e deixar nas mãos do advertido leitor.

Bem advertido: o corpo é pelo menos metade do que somos. No entanto, o deixamos escondido num closet verbal. Por pudor, não nos referimos a suas inapreciáveis e indispensáveis funções. Dispensem-me vocês: falarei com todo o detalhe de meu corpo. Porque, se não o fizer, logo meu corpo não será senão cadáver insepulto, ave de açougue, anônimo lombo. E, se não quiserem saber de minhas intimidades corporais, pulem este capítulo e iniciem a leitura, muito formalmente, no seguinte.
Sou um homem de vinte e sete anos de idade e um metro e setenta e oito de altura. Toda manhã me olho nu no espelho de meu banheiro e acaricio as faces antecipando a cotidiana cerimônia: fazer a barba e o bigode, provocar uma reação forte com a água-de-colônia Jean-Marie Farina no rosto, resignar-me a pentear um cabelo preto, grosso e revolto. Fechar os olhos. Negar ao rosto e á cabeça preto, grosso e revolto. Fechar os olhos. Negar ao rosto e á cabeça o papel principal que minha morte se encarregará de dar-lhes. Concentrar-me, em vez disso, em meu corpo. O tronco que vai separar-se da cabeça. O corpo que me ocupa do pescoço às extremidades, revestido de uma pele cor de canela pálida e externado em unhas que continuam crescendo horas e dias após a morte, como se quisessem arranhar a tampa do caixão e gritar aqui estou eu, continuo vivo, você se enganaram ao enterrar-me.
Esta é uma consideração puramente metafísica, como o é o terror em suas modalidades passageiras e permanentes. Devo concentrar-me em minha pele aqui e agora: devo resgatar meu físico, em toda a sua integridade, antes que seja tarde demais. Este é o órgão do tato que cobre todo o meu corpo e se prolonga dentro dele com travessuras anais módicas e permissíveis se comparadas com as brincadeiras maiores do gênero feminino, com seu incessante entrar e sair de corpos alheios (a verga do macho notoriamente e o corpo do menino sagradamente, enquanto de meu envoltório masculino só saem o sêmen e a urina pela frente, e por trás, tal como chez la femme, a merda e, em casos de prisão de ventre, a hóstia profunda do supositório). Cantarolo agora: “Caga o boi, caga a vaca e até a menina mais guapa solta sua bola de caca.” Amplas, generosas entradas e saídas da mulher. Estreitas, avaras as do homem: a uretra, o ânus, a urina, a merda. Claros e brutais os nomes. Obscuros e risíveis as alcunhas: tubos de Bellini, asa de Henle, cápsula de Bowmann, glomérulo de Malpigio. Perigos: anuria e uremia. Sem urina. Urina no sangue. Eu os evitei. Tudo, ao fim e ao cabo, é evitável na vida, menos a morte.
Suei. em vida suou todo o meu corpo, com exceção das pálpebras e da borda dos lábios. Suei limpo, salgado, sem mau cheiro, embora suar e urinar fossem produtos humanos, mas distinguíveis pela qualidade distinta do cheiro. Nunca precisei de desodorantes. Tive nobres e limpas axilas. Minha urina, sim, cheirou mal, a tugúrio esquecido e a caverna sem luz. Meu cocô variou com as circunstâncias, sobretudo dependendo da dieta. A comida mexicana nos aproxima perigosamente da diarréia, a norte-americana da cólica, a britânica da prisão de ventre. Apenas a cozinha mediterrânea assegura um equilíbrio sadio entre o que entra pela boca e o que sai pelo cu, como se o azeite de oliva e o vinagre de Módena, o produto das horas de Meio-dia, os pêssegos e os figos, os melões e os pimentões, soubessem antecipadamente que o gosto de comer deve ser compensado como o gosto de cagar, muito de acordo com as prosas de Quevedo: “Mais te amo que a uma boa vontade de cagar.”
Em todo o caso — em meu caso —, a merda é quase sempre dura e amarronzada, ás vezes enroscada com estética como as de barro que se vendem nos mercados, às vezes diluída e atormentada pelos alimentos picantes nacionais: merda minha. E raras vezes (sobretudo ao viajar) reticente e mal-encarada.
Sei que com estas diversões, meus caros sobreviventes, estou adiando o mais importante. Chegar à minha cabeça. Contar-lhe como era meu rosto após dar a entender que as nádegas são, como é bem sabido, o segundo rosto do homem. Ou será o primeiro? Já indiquei, ao pentear-me, que tenho uma boa mata indígena de cabelo escuro e mais enraizado que um agave. Falta-me indicar que meus olhos escuros afundem nas órbitas de um esqueleto facial quase transparente se não fosse pelo disfarce moreno da pele. (A pele morena esconde melhor os sentimentos que a pele branca. Por isso quando se manifesta é mais brutal, ainda que menos hipócrita.) Resumo: tenho sobrancelhas invisíveis, boca agradável, fina, quase sempre, e sem razão alguma, salvo a da cortesia, sorridente. Orelhas nem grandes nem pequenas, apenas adequadas a meu rosto extremamente magro, a pele colada ao osso, as raízes do cabelo brotando como matos noturnos que crescem sem luz.
E tenho nariz. Não um nariz qualquer, mas uma probóscide grande, por sorte fina, mas longa e fina, como um periscópio da alma que se adianta á vista para explorar a paisagem e saber se vale a pena desembarcar ou permanecer retraído, debaixo do mar da existência.
O grande sargaço da morte antecipada.
O mar que sobe em breves ondas, obrigando-me a engoli-lo antes que chegue aos orifícios de meu grande nariz, saliente entre a praia e a maré do amanhecer.
Sou corpo. Serei alma.

"A vontade e a fortuna" (Rocco), novo romance do escritor mexicano Carlos Fuentes.