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Richard Clayderman - Matrimonio De Amor .mp3
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domingo

Fabrício (Carpi Nejar) Carpinejar nasceu em Caxias do Sul – RS, em 23 de outubro de 1972, filho do poeta Carlos Nejar. É mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O FIM É LINDO
Fabrício Carpinejar




Minha casa é estranhamente regulada. Quando uma lâmpada queima, as outras vão junto. É um boicote que aumenta em minutos para testar a paciência. O gás da cozinha falta bem no momento da janta, e logo de madrugada, com o objetivo de me constranger ao telefone com uma lista infindável de entregadores. Se o computador estraga, o chuveiro também e o microondas sofre problemas de circuito. Confio que os aparelhos se imitam e conversam entre si. Devem reivindicar melhores condições de trabalho e uso, cobrar insalubridade, ou estão cansados das extensões e da sobrecarga indevidas. O certo é que minha casa é grevista. Insurgente. Nunca acontece de algo quebrar isoladamente.
Cheguei a minha residência depois de uma série de viagens. E mal acendi a luz, puf, puf, puf. Meu dedo estalou em cada interruptor. Teve até choque. Foi patético, para não dizer desanimador. Corredores mexendo as sombras, as paredes escorrendo a cegueira.
Mas, um pouco antes de explodirem, as lâmpadas aumentaram sua fosforescência. Puxaram todo o resto de força para refulgirem a extinção. Estenderam seus aros como nunca antes, com a potência de um refletor.
O mesmo ocorreu com o gás de cozinha, a chama das bocas subiu com perigosa curiosidade. Poderia ouvir o fogo gemer. Ele escurecia as bordas das panelas com sua assinatura. Quase formava os dedos de uma mão.
Conclui que o fim é lindo.
Assim como as luzes da casa e do fogão, o amor perto do desastre não se economiza. Não mais se contém. É desesperadamente transparente.
Um casal diante do fim terá a grande noite de sua vida por não prever uma próxima. Sairá do esconderijo porque não se vê mais seguro. Mostrará do que é capaz. Queimará o que guardou, não fará mais nenhum jogo, esquecerá a sedução e os conselhos dos amigos. Mais intensidade do que intenção.
É o escândalo da verdade. Tímidos se transformam em terroristas, calmos ficam enervados, pacientes se portam como histéricos. Por um instante, não há medo de fazer as propostas mais desvairadas, confessar palavras reprimidas, estender os olhos como um lençol limpo.
O fim é lindo. Do crepúsculo, de uma vela, de uma chuva. O fim é esperançoso, exigente. Pancadas de beleza. O som e o sol pulam como um suicida ao avesso para dentro da vida.

O poema acima foi extraído do livro "Canalha!", Ed. Bertrand Brasil - Rio de Janeiro, 2008, pág. 314.
PROJETO RELEITURA  

EVANDRO AFFONSO FERREIRA EM DOIS MINICONTOS

DOIS MINICONTOS

Evandro Affonso Ferreira

TaediumVitae



Desempregado, time caiu pra terceira divisão, artrite cada vez pior, senhorio no encalço, dor intermitente no peito, geladeira vazia, mulher com caroço esquisito no seio esquerdo, filho drogado, xi, mais essa, válvula da descarga quebrou.


Suspicaz

Você anda muito desconfiante, querida, muito desconfiante, sinto isso no fundo da alma, de mais a mais é preciso dizer que não existe homem em tais condições inteiramente fiel, não existe, nem mesmo Diógenes com sua lâmpada conseguiria encontrá-lo em plena luz do dia, de modo que você precisa acabar de vez com isso, querida, do contrário, não lhe trarei outras flores no próximo finados.

CARLOS NEJAR, POETA, FICCIONISTA, CRÍTICO E TRADUTOR

O HOMEM E AS COISAS
Carlos Nejar


à nossa vestidura;
na máscara que somos
as coisas nos conjuram.

Por que não escutá-las,
tão sáfaras e puras,
como flores ou larvas,
estranhas criaturas?

Por que desprezá-las
no sopro que as transmuda
com os olhos de favas,
fechados na espessura?

Por que não escutá-las
na linguagem mais dura,
comprimidas as asas
na testa que as vincula?

Despimos a armadura
e a viseira diurna;
a linguagem resvala
onde as coisas se apuram.

Recônditas e escravas
na cava da palavra,
são fiandeiras escuras
ou áspides sequiosas.

 
As coisas não se submetem
à nossa vestidura.


Poema extraído do livro “Obra poética I”, Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 1980, pág. 329

PROJETO RELEITURA