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Richard Clayderman - Matrimonio De Amor .mp3
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terça-feira

O GRANDE MANUEL BANDEIRA

O ENTERRO DO SINHÔ
Manuel Bandeira

 

J. B. SILVA, o popular Sinhô dos mais deliciosos sambas cariocas, era um desses homens que ainda morrendo da morte mais natural deste mundo dão a todos a impressão de que morreram de acidente. Zeca Patrocínio, que o adorava e com quem ele tinha grandes afinidades de temperamento, era assim também: descarnado, lívido, frangalho de gente, mas sempre fagueiro, vivaz, agilíssimo, dir-se-ia um moribundo galvanizado provisoriamente para uma farra. Que doença era a sua? Parecia um tísico nas últimas. Diziam que tinha muita sífilis. Certamente o rim estava em pantanas. Fígado escangalhado. Ouvia-se de vez em quando que o Zeca estava morrendo. Ora em Paris, ora em Todos os Santos, subúrbio da Central. E de repente, na Avenida, a gente encontrava o Zeca às três da madrugada, de smoking, no auge da excitação e da verve. Assim me aconteceu uma vez, e o que o punha tão excitado naquela ocasião era precisamente a última marcha carnavalesca de Sinhô, o famoso Claudionor...

que pra sustentar família
foi bancar o estivador...



Me apresentaram a Sinhô na câmara-ardente do Zeca. Foi na pobre nave da igreja dos pretos do Rosário. Sinhô tinha passado o dia ali, era mais de meia-noite, ia passar a noite ali e não parava de evocar a figura do amigo extinto, contava aventuras comuns, espinafrava tudo quanto era músico e poeta, estava danado naquela época com o Vila e o Catulo, poeta era ele, músico era ele. Que língua desgraçada! Que vaidade! mas a gente não podia deixar de gostar dele desde logo, pelo menos os que são sensíveis ao sabor da qualidade carioca. O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda. De quando em quando, no meio de uma porção de toadas que todas eram camaradas e frescas como as manhãs dos nossos suburbiozinhos humildes, vinha de Sinhô um samba definitivo, um Claudionor, um Jura, com um "beijo puro na catedral do amor", enfim uma dessas coisas incríveis que pareciam descer dos morros lendários da cidade, Favela, Salgueiro, Mangueira, São Carlos, fina-flor extrema da malandragem carioca mais inteligente e mais heróica... Sinhô!

Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a fascinação que despertava em toda a gente quando levado a um salão.

Vi-o pela última vez em casa de Álvaro Moreyra. Sinhô cantou, se acompanhando, o "Não posso mais, meu bem, não posso mais", que havia composto na madrugada daquele dia, de volta de uma farra. Estava quase inteiramente afônico. Tossia muito e corrigia a tosse bebendo boas lambadas de Madeira R. Repetiu-se a toada um sem número de vezes. Todos nós secundávamos em coro. Terán, que estava presente, ficou encantado.

Não faz uma semana eu estava em casa de um amigo onde se esperava a chegada de Sinhô para cantar ao violão. Sinhô não veio. Devia estar na rua ou no fundo de alguma casa de música, cantando ou contando vantagem, ou então em algum botequim. Em casa é que não estaria; em casa, de cama, é que não estaria. Sinhô tinha que morrer como morreu, para que a sua morte fosse o que foi: um episódio de rua, como um desastre de automóvel. Vinha numa barca da Ilha do Governador para a cidade, teve uma hemoptise fulminante e acabou.
Seu corpo foi levado para o necrotério do Hospital Hahnemanniano, ali no coração do Estácio, perto do Mangue, à vista dos morros lendários... A capelinha branca era muito exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (lá estava o velho Oxunã da Praça Onze, um preto de dois metros de altura com uma belida num olho), todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas... Essa gente não se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste deliciosamente mesmo na hora do enterro. Há prostitutazinhas em tecido opala vermelho. Aquele preto, famanaz do pinho, traja uma fatiota clara absolutamente incrível. As flores estão num botequim em frente, prolongamento da câmara-ardente. Bebe-se desbragadamente. Um vaivém incessante da capela para o botequim. Os amigos repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolam os sambas (Tu te lembra daquele choro?). No cinema d'a Rua Frei Caneca um bruto cartaz anunciava "A Última Canção" de Al Johnson. Um dos presentes comenta a coincidência. O Chico da Baiana vai trocar de automóvel e volta com um landaulet que parece de casamento e onde toma assento a família de Sinhô. Pérola Negra, bailarina da companhia preta, assume atitudes de estrela. Não tem ali ninguém para quebrar aquele quadro de costumes cariocas, seguramente o mais genuíno que já se viu na vida da cidade: a dor simples, natural, ingênua de um povo cantador e macumbeiro em torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foi por excelência intérprete de sua alma estóica, sensual, carnavalesca.

Na crônica acima, extraída do livro “Os Reis Vagabundos e mais 50 crônicas”, Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1966, pág. 11, ele narra sua convivência em vida com o famoso compositor da música popular brasileira, Sinhô, que muitos dizem ser o autor do primeiro samba, e a cena de seu velório, o que a faz uma peça descritiva de alto valor.

O BRASIL DO PROFESSOR GILBERTO FREYRE

O OUTRO BRASIL QUE VEM AÍ
Gilberto Freyre


Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
de outro Brasil que vem aí
mais tropical
mais fraternal
mais brasileiro.
O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados
terá as cores das produções e dos trabalhos.
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças
terão as cores das profissões e regiões.
As mulheres do Brasil em vez das cores boreais
terão as cores variamente tropicais.
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil,
todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor
o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco.

Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil
lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro

contanto que seja digno do governo do Brasil
que tenha olhos para ver pelo Brasil,
ouvidos para ouvir pelo Brasil
coragem de morrer pelo Brasil
ânimo de viver pelo Brasil
mãos para agir pelo Brasil
mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis
mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores europeus e norte-americanos a serviço do Brasil
mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar).
mãos livres
mãos criadoras
mãos fraternais de todas as cores
mãos desiguais que trabalham por um Brasil sem Azeredos,
sem Irineus
sem Maurícios de Lacerda.
Sem mãos de jogadores
nem de especuladores nem de mistificadores.


Mãos todas de trabalhadores,
pretas, brancas, pardas, roxas, morenas,
de artistas
de escritores
de operários
de lavradores
de pastores
de mães criando filhos
de pais ensinando meninos
de padres benzendo afilhados
de mestres guiando aprendizes
de irmãos ajudando irmãos mais moços
de lavadeiras lavando
de pedreiros edificando
de doutores curando
de cozinheiras cozinhando
de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas comadres dos homens.


Mãos brasileiras
brancas, morenas, pretas, pardas, roxas
tropicais
sindicais
fraternais.
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem aí.


Poema escrito em 1926 e publicado no livro "Poesia Reunida", Editora Pirata - Recife, 1980.

ONDE ESTÃO AS BORBOLETAS AZUIS? POR JOSÉ LINS DO REGO

ONDE ESTÃO AS BORBOLETAS AZUIS?
José Lins do Rego



O dia hoje está uma maravilha e, aqui de minha casa, eu olho para a lagoa que tem as águas luminosas pelo sol de maio que há pouco nascera. É uma manhã de glória como dizem os poetas, e para gozá-la, saio a passear.
Nada nesta cidade se parece mais com um recanto de romance que esta lagoa mansa, sem rumores de ondas, quieta, sem arrogâncias de águas raivosas. Tudo por aqui é como se fosse domado pela mão do homem, lagoa doméstica que, pela sabedoria sanitária do Saturnino de Brito, se transformara, de foco de mosquitos e de febres, em esplendor de beleza, capaz de em planos de bom urbanista ser o orgulho de uma cidade. Mas, mal o cronista apaixonado pelos recantos idílicos da natureza inicia a sua viagem lírica, começa a sentir que os homens são criaturas sem entranhas, terríveis criaturas sem amor ao que deviam amar, sem cuidado pelo que deviam cuidar.
Porque, mal me pus a andar pelas terras que circundam a lagoa, o que vi não é para que se conte.
Há quem diga e afirme que o brasileiro não gosta da natureza. Que todos somos inimigos das árvores, dos rios, da terra. E há a teoria de que o pavor da floresta nos transformara em citadinos, em derrubadores de matas, queimadores de terras. Mas esta teoria não corresponde à realidade, se nos voltarmos para os bosques e jardins de outrora que por toda a parte alegravam as nossas cidades.
Aqui no Rio de tempos para cá, deu nos homens de Governo uma verdadeira doença que é este desprezo e quase ódio pelos nossos recantos da natureza.
Há o caso das matas da Tijuca para uma exceção honrosa. Mas, por outro lado, há este caso da Lagoa Rodrigo de Freitas, como um crime monstruoso. Porque tudo que é erros e mais erros foram cometidos em relação à paisagem deste maravilhoso pedaço de nossa cidade.
Isto de se conduzir o lixo do Rio para aterrar trechos e trechos de uma massa líquida que é um regalo para os olhos, não merece nem um comentário, pela estupidez, pela lamentável grosseria de homens que não respeitam nada.
E feito isto não há quem possa se aproximar da lagoa Rodrigo de Freitas. Lá estão os bichos podres, uma fedentina horrível a atrair urubus como numa "sapucaia". E o que podia ser uma atração para os que pretendessem repousar, é aquilo que nos envergonha e nos dói.
O Sr. Hildebrando de Góis, que saneou a "Baixada Fluminense", se quiser encontrar o que sanear, que faça este passeio a que o modesto cronista se arriscou, por entre lixos, com urubus quase a roçarem-lhe o rosto.
Onde estão as borboletas azuis do poeta Casimiro?


José Lins do Rego Cavalcanti nasceu em Pilar, Estado da Paraíba, em 03 de junho de 1901, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 1957. Criado no engenho Corredor, de propriedade do avô materno, fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa), vindo a se formar em Direito no Recife no ano de 1918. Foi também no Recife que veio a conhecer intelectuais como Gilberto Freyre, José Américo de Almeida e Olívio Montenegro. Tempos depois conheceria em Maceió dois grandes nomes da literatura de seu tempo: Jorge de Lima e Graciliano Ramos. Exerceu o cargo de promotor público em Manhaçu (MG). Publicava, desde sua tenra juventude, artigos em suplementos literários, passando após algum tempo a escrever romances. Seu primeiro livro foi publicado em 1932: Menino de Engenho, custeado com dinheiro do próprio bolso, e que atingiu enorme repercussão, abrindo caminho para uma série de obras de grande importância em nossa literatura. José Lins do Rego veio para o Rio de Janeiro em 1935. Consagrado como o grande escritor regionalista brasileiro ao lado de Graciliano Ramos, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras no ano de 1956 . Sua obra tem como característica ser detentora de um profundo lirismo e de uma linguagem cheia de vocábulos regionais. Neto de um poderoso senhor de engenho, José Lins do Rego conviveu com essa transição econômica e cultural por toda a sua juventude, o que concede a seus textos um tom de biografia que se estende desde o seu primeiro livro. Neste ano de 2001, quando completaria 100 anos de vida, a Academia Brasileira de Letras o homenageia com uma exposição e um ciclo de palestras sobre sua vida e sua obra. Outra homenagem foi prestada com a criação de um prêmio literário, no valor de R$30.000,00, para a melhor obra criada em torno do autor que escrevia guiado pelas emoções e pela memória.

O texto acima foi extraído do livro "O Melhor da Crônica Brasileira", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1997, pág. 40.

Projeto Reeleitura

A LIBERDADE NOS LIVROS POR LYA LUFT

A DIGNIDADE HUMANA
Lya Luft


O presídio, pequeno e de um só andar, a que chamávamos "a cadeia", ficava na outra esquina, em diagonal com a esquina de nossa casa. Acordada no escuro, às vezes a menina que eu era escutava gritos vindos de lá. "Deviam estar batendo em algum dos presos", me diziam de manhã. Aquilo era uma peça perdida no interessante quebra-cabeça do mundo que eu estava descobrindo e já amava. Pois, há alguns anos um telefonema da diretora do presídio feminino da cidade onde resido comunicou-me que estavam instalando uma biblioteca para as presidiárias. As "apenadas" queriam dar meu nome ao local. Ela me consultava para saber "se eu não me ofenderia com isso". Ao contrário, respondi, eu me sentia honrada, de verdade.
Meses depois, novo telefonema: a biblioteca estava pronta, queriam que eu fosse inaugura-la. Antes, uma visita ao lugar. Refeitório, oficina, ateliê, algumas celas com berços para filhos - várias presas tinham crianças pequenas, que até certa idade poderiam ficar com a mãe - e a modesta biblioteca me pareceram normais. Havia setores onde não pude entrar. Imaginei que seriam as solitárias. Não acredito que fossem o chiqueiro imundo de presídio que conheço via imprensa e outros relatos, mais uma prova de que o ser humano tem um lado sombrio preocupante, pois aquilo não é decidido e administrado por psicopatas, mas por pessoas no cumprimento da lei (as perguntas seriam: que pessoa e que leis?).
Vendo minha emoção, minha acompanhante dizia: "Não se impressione demais, aquela vovozinha desdentada matou os três filhinhos da amante do marido. Aquela moça com cara de anjo esfaqueou e mutilou o marido, que a traía". Mas a maioria dos casos, ela me disse, era de "crimes do coração". Mulheres de todas as idades estavam ali em lugar de seu companheiro: numa batida policial, o traficante botara a droga embaixo do travesseiro, nas roupas dela ou do bebê, e fugira. Apanhada, a pobre fora para a prisão no lugar dele, e em geral elas aceitavam tudo sem o acusar.
No fim da visita, hora de inaugurar a biblioteca, descerrando a placa que me deixaria presente ali definitivamente. Fiquei aflita. O que dizer àquelas mulheres, algumas jovenzinhas, outras já envelhecidas, olhos magoados de criança surrada ou duros como punhais? Eu não havia preparado nada. Não dou conferências. Converso com as pessoas, divido com elas minha curiosidade ou reflexões. Ali fiquei insegura., me senti pequena, quase miserável - tudo o que eu dissesse estaria errado. Logo eu voltaria para as ruas, para minha casa, para minha família. Elas ficariam lá, justa ou injustamente, por alguns anos, muitos anos, a vida toda.

Entendi que a única saída era a sinceridade: disse-lhes sem rodeios que estava me sentindo mal, que não tinha palavras, que me incomodava a liberdade de sair em seguida, enquanto elas ficariam. Não me importavam, ali, nem justiça nem injustiça. Importava o que poderia lhes dizer de pessoa para pessoa. Lembrei, então, a frase de meu pai para alguém que o visitava quando eu era mocinha, e que me foi relatada anos depois. Estendendo a mão para as fileiras de livros em suas paredes, meu pai apenas disse: "Estes são os meus amigos". Pois para elas, ali prisioneiras, os livros também poderiam ser conforto e distração. Porta e janela para o mundo. Aula de psicologia, de história, de qualquer matéria. Momento de beleza. Hora de chorar. Ocasião de abrir os olhos para qualquer coisa que ajudasse a diminuir a dor e dar esperança. Possibilidade de conhecimento de si, dos outros, de tudo. Entre as modestas prateleiras, estava algo que ninguém poderia lhes tirar: a liberdade de pensar e de sentir, a liberdade de ser gente.
Recordei aquele episódio lendo outro dia notícias sobre a moça presa entre dezenas de homens: ser menor de idade era um detalhe, pois mulher alguma, dos 8 aos 80, pessoa alguma, homem, mulher, adolescente ou criança, pode ser tratada como um animal. Aliás, corrijo: animal algum pode ser jogado no lixo, em uma cela imunda, apinhada de seres desesperados, enquanto lá fora, nos tribunais e nas cortes, se pronunciam em tom solene palavras pernósticas e frases complicadas sobre justiça, direito e lei.
Enquanto houver uma cela com quarente homens ou mulheres quando caberiam quarenta, enquanto houver pátios sujos de sangue, urina e fezes, enquanto houver tortura, maus-tratos e injustiças que gritam aos céus, não teremos direito de falar em lei e direito neste país. Seremos todos, direta ou indiretamente, malfeitores.

Texto extraído da Revista Veja, edição 2042 - ano 41 - 9 de janeiro de 2008.

O ESTILO INCONFUNDÍVEL DE ALBERTO MORAVIA

O PERU DE NATAL
Alberto Moravia



No dia de Natal, quando o comerciante Policarpi-Curcio ouviu no telefone a mulher pedindo-lhe que chegasse em casa pontualmente porque tinha peru, alegrou-se muito, visto que, com o passar dos anos, não lhe restara outra paixão a não ser a gula. Imensa porém foi sua surpresa quando, ao chegar em casa por volta de meio-dia, encontrou o peru não na cozinha, enfiado no espeto e girando lentamente sobre um fogo de carvão, mas na sala de visita. O peru, vestido com elegância antiquada, com um paletó preto com debruns de seda, calças em tecido xadrez preto e branco e colete cinza com botões de osso, conversava com a filha de Curcio. A surpresa de Curcio ao encontrar o peru numa atitude e num lugar tão insólitos foi tão grande que, após as apresentações, aproveitando um momento de silêncio, ele não pôde deixar de inclinar-se para frente e dizer com cortesia mas também com firmeza: "Com licença, senhor... não sei se estou enganado... mas... mas me parece que o seu lugar não deveria ser aqui... repito, não sei se estou enganado... mas... o seu lugar deveria ser..." ia dizer "na panela", quando a mulher que, como ela mesma dizia, conhecia o seu rebanho, pisou-lhe no pé; e Curcio, que sabia por longa experiência o que significava aquele gesto, calou-se. A mulher, então, fez-lhe um sinal e, arrastando-o para fora da sala, disse-lhe em voz baixa e excitada que, pelo amor de Deus, não estragasse tudo. O peru era nobre, rico e influente; enfim, um excelente partido; e já demonstrava um interesse particular e evidentíssimo por Roseta; por acaso, com seus estúpidos comentários, ele queria acabar com o casamento que estava quase para se concretizar? Curcio desculpou-se com a mulher e jurou que não abriria mais a boca. Quanto ao peru, a pergunta do anfitrião desavisado teve apenas o efeito de fazê-lo pegar o monóculo e examinar o infeliz de cima a baixo. Logo depois voltou a conversar com a filha de Curcio.
"Não adianta falar", pensava Curcio daí a pouco, sentado à mesa, enquanto a mulher se desdobrava em cortesias com o peru, "com um tipo como este, mais que dar-lhe a filha em casamento, a gente gostaria de torcer-lhe o pescoço". Curcio estava irritado sobretudo com o ar de superioridade e displicência que o peru assumia toda vez que lhe dirigia a palavra. Curcio sabia muito bem que vinha, como se costuma dizer, do nada, e que suas maneiras não eram tão elegantes como a mulher e a filha desejariam que fossem. Mas ele trabalhara a vida toda e ganhara muito dinheiro, era essa a razão pela qual não tinha tido tempo de cuidar da sua educação. O peru, ao contrário, com toda aquela empáfia, não poderia dizer o mesmo. Belas maneiras, sem dúvida, ares de grão-senhor, mas no final das contas, Curcio poderia jurar, pouca substância. Outra coisa que irritava Curcio era a maneira com a qual o peru, após ter dito alguma coisa espirituosa ou profunda, atirava a cabeça para trás, enfiando o bico e os barbilhões na gravata preta de plastrão e estufando o peito debaixo do colete. E finalmente o peru falava com a mulher de Curcio com a mesma escolha cuidadosa de palavras e a mesma modulada preciosidade de acento com que se dirigiria a uma duquesa. Mas Curcio enfurecia-se porque lhe parecia perceber certa dose de ironia neste respeito excessivo. "Para a panela", pensava, "para a panela...”
Contudo, essa antipatia de Curcio era mais do que compensada pela enfatuação das duas mulheres, mãe e filha, pelo peru. A mulher de Curcio e Roseta ficavam simplesmente suspensas aos lábios, ou melhor, aos barbilhões do peru, que as fascinava com seus relatos incríveis de festas, divertimentos, viagens, sucessos mundanos. A familiaridade respeitosa de um peru como aquele, que tinha intimidade com a alta sociedade, envaidecia a mãe. Quanto a Roseta, ela enrubescia, empalidecia, tremia e dirigia ao peru olhares ora suplicantes, ora inflamados, ora lânguidos, ora assustados. Acontece que desde o início do almoço o pé do peru, calçado numa antiquada mas elegante bota de camurça cinza com botões de madrepérola, não parava um instante sequer de molestar a sapatilha da moça.
Depois que o peru foi embora, houve uma discussão violentíssima entre Curcio e a mulher. Curcio dizia que estava na hora de parar com esses elegantões sofisticados e esnobes que, como todo mundo sabe, escondem sob a arrogância um monte de trapaças. Ele tinha trabalhado a vida toda e não se sentia inferior a nenhum peru deste mundo. A mulher respondia que este furor era inútil; o peru nunca afirmou que era superior a ele; que bicho o tinha mordido? Quanto a Roseta, tendo-se deitado como costumava fazer todo dia depois do almoço, já estava sonhando com o peru. Via-o inclinado sobre ela que estava deitada de costas, as asas em volta de seus ombros, o bico sobre seus lábios entreabertos. 0 peru olha para ela carrancudo, e começa a estufar-se, a estufar-se, enchendo o quarto com suas penas cinzentas; mas, embora seja imenso ele parece leve ao colo de Roseta que suspira no sono e murmura: "Querido peru".
Nos dias seguintes apesar da crescente e visível antipatia de Curcio, o peru acabou se instalando na casa. Almoçava com eles; em seguida, ia para a sala de visita com a filha e lá ficava até a hora do jantar. Os dois, disse a mulher a Curcio, estavam praticamente noivos, embora o peru por motivos de família não quisesse que fosse feito, por enquanto, o anúncio oficial. "Belo genro", resmungava Curcio, “aceito um homem trabalhador, simples, de bom coração, mas um peru..." Curcio, entrando em casa, podia ver, através dos vidros da porta da sala, a graciosa cabeça da filha ao lado da cabeça oca, feroz e estúpida do peru. Ele pensava que aquelas mãozinhas tão brancas e miúdas podiam estar acariciando aqueles barbilhões vermelhos e enrugados e sua antipatia aumentava.
Acontece que, mesmo continuando a cortejar Roseta, o peru não se decidia a pedi-la em casamento. Até a mãe começava a ficar preocupada. Se era um peru sério, disse ela um dia para a filha, devia apresentar-se aos pais e pedi-la em casamento. Roseta, ao ouvir essas palavras, olhou assustada para a mãe e não disse nada. Na realidade, o peru tinha conseguido desde os primeiros dias obter da moça os extremos favores. E agora ela, não menos que a mãe, estava ansiosa para que o peru regularizasse , por assim dizer, sua situação.
Um dia Roseta recebeu o peru na sala com um rio de lágrimas. Ela não podia viver daquela maneira, balbuciava entredentes, mentindo para si mesma e para os pais O peru percorria a sala com largas passadas, as penas desalinhadas fora do colete, o bico entreaberto e enfurecido, os olhos injetados de sangue. Finalmente disse-lhe que ela podia tirar da cabeça a idéia de casamento. Em vez de casar, se ela quisesse, podia fugir com ele para o exterior. Naquela noite ou nunca mais. Após muitas hesitações, Roseta acabou concordando.
Naquela noite, Curcio, que sofria de insônia, levantou-se para ir tomar um pouco de ar na janela. Era uma noite de verão com a lua no auge de seu esplendor. Os Curcio moravam num palacete. Olhando pela janela, sem fazer barulho nem acender as luzes para não acordar a mulher, a primeira coisa que viu foi a sombra gigantesca do peru, com a cabeça erguida e o pescoço estufado, o bico verruguento virado para cima, refletida nitidamente na parede da casa inundada pela branca luz do luar. Ele baixou os olhos .e ainda teve tempo de ver a filha pular de uma janela do primeiro andar entre os braços do peru. Este, carregando-a nos braços como se fosse uma trouxa, com uma força de que ninguém suspeitaria, rapidamente levava a moça em direção ao portão. Curcio acordou a mulher, correu a buscar uma velha espingarda. Mas quando desceu não encontrou nenhum sinal dos fugitivos.
No dia seguinte, Curcio deu parte à policia do rapto. Mas nas delegacias ninguém acreditou. Um peru, diziam, como é possível que um peru tenha raptado sua filha. Os perus ficam nas gaiolas. Aliás a filha era maior de idade e não havia nada a fazer.
Mas as trapaças do peru foram descobertas assim mesmo. Descobriu-se que era casado, com filhos. Descobriu-se ainda que não era nem nobre nem rico, mas apenas um simples garçom expulso de vários lugares por furto. Curcio exultava, embora cheio de bílis. A mulher só chorava e chamava a filha.
Tudo acabou com o costumeiro pedido de resgate; e Curcio teve que desembolsar muitos daqueles "belos tostões" ganhos com tanto sacrifício para ter de volta em casa a filha desonrada. Isso aconteceu em dezembro. No dia de Natal, a mulher telefonou para Curcio pedindo que não demorasse a voltar para casa já que havia peru; para eliminar qualquer equívoco, acrescentou que se tratava de uma pessoa muito séria que demonstrava uma visível inclinação por Roseta. Não era, enfim, um peru como aquele do ano passado, quanto a isso podia confiar. "Eis como são as mulheres", pensou Curcio. Mas desta vez ele jurou que abriria bem os olhos, e não se deixaria enganar pelas falsas aparências e pelas palavras vazias de nenhum peru, fosse ele aristocrático ou plebeu.

Alberto Moravia (1907-1990) nasceu em Roma, Itália. De origem judaica, é um dos grandes escritores do século XX. Romancista consagrado com títulos como Os Indiferentes, A Romana, As Ambições Frustradas, teve alguns de seus romances filmados por Bertolucci (O Conformista) e Godard (Le Mépris), entre outros. Moravia escreveu ainda centenas de contos, a maioria deles disponíveis em português: Contos Romanos, Novos Contos Romanos, A Casa de Praia das Sextas-feiras, A Coisa e outros contos e Contos Surrealistas e Satíricos.

Texto extraído do livro “Os cem melhores contos de humor da literatura universal”, Ediouro – Rio de Janeiro, 2001, pág. 477, organização de Flávio Moreira da Costa e tradução de Álvaro Lorencini e Letícia Zini Arantes.